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Lost in Translation

Lost in Translation

Por Joisa Dutra(*)

Artigo publicado pela presidente do Conselho Empresarial de Energia da ACRJ no Jornal Valor Econômico, dia 14 de junho

O filme excelente com Bill Murray ilustra bem o significado do título desse artigo: há casos ou momentos em que a tradução não consegue exprimir o verdadeiro significado da mensagem. Mas não é apenas na passagem entre diferentes idiomas que a mensagem se perde: algumas vezes na mesma língua a comunicação é imprecisa. E o setor elétrico padece desse problema. A questão é qual é o custo de uma mensagem mal interpretada.

Em livro publicado em maio de 2001, Roberto Rockman e Lúcio Mattos se debruçam sobre o episódio do racionamento, enfrentado pelo país em 2001. Para gerenciar a crise ocorrida, há duas décadas foi criada a Câmara de Gestão da Crise do Setor Elétrico (GCE). Coincidência ou não, o lançamento do livro ganha ainda mais notoriedade diante das preocupações com o tema da segurança do suprimento que ocupam espaço crescente na mídia. Ao mesmo tempo em que analistas de mercado revisam para cima suas projeções de crescimento do PIB na recuperação da crise da pandemia – algo a celebrar – produzem-se também relatórios que tentam interpretar e prever clima para avaliar a probabilidade de racionamento em um futuro próximo. Mas afinal, vamos escapar?

É aí que o leitor não versado entra pelo cano: opiniões de especialistas para cá e para lá podem deixá-lo confuso no meio do caminho. Alguns prenunciam o caos e outros asseguram que não há razão para pânico. Há ainda os que afirmam que o voo de 2021 se dará em céu de brigadeiro (que aqui significa chuva), talvez com algumas poucas nuvens em 2022. Como se não bastassem as incertezas da economia e da política, o analista de mercado e o governo ainda precisam lidar com previsões climáticas e do futuro da pandemia.  Mas será que é esse o caminho? Argumento que não: essa aposta não cabe ao setor elétrico.

A performance do setor, como o de qualquer indústria de infraestrutura, deveria ser avaliada pelo atendimento aos objetivos de política. Claro que múltiplos interesses não raro produzem resultados conflitantes. Mas alguns são inquestionáveis: o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 7, das Nações Unidas, é assegurar acesso universal a energia confiável, sustentável e a preços acessíveis. Cabe avaliar nossa capacidade de atingi-lo.

O Brasil é verdadeiramente privilegiado no seu potencial de alinhamento com o futuro do setor elétrico na transição energética. Temos uma matriz renovável que caminha para uma diversificação alinhada com as tendências mundiais. Relatórios recentes da Agência Internacional de Energia (IEA) reafirmam a importância das fontes renováveis variáveis para atingir a meta de economia carbono neutra em 2050. Partindo de um base predominantemente hidrelétrica, a energia eólica fez uma estreia em alto estilo e cheia de talento. Nossa produtividade é alta, fruto de ventos de alta qualidade.

Mas é a expansão da geração solar a aposta da IEA nessa década. Já arrancamos com políticas para geração distribuída, que penalizam mais usuários de menor poder aquisitivo.  Mas essa fonte tem enorme capacidade de prosperar no país: há espaços virtuosos e com ganhos de eficiência para plantas de maior porte (utility scale); expansão em edificações, através da regulação e novos padrões construtivos; e arranjos de tecnologia limpa para substituir combustíveis fósseis nos sistemas isolados, que atualmente custam quase R$ 8 bilhões por ano aos consumidores das demais regiões do país.

Parece que voamos em céu de brigadeiro, exceto por um problema: nossa produção predominantemente renovável insiste em nos assustar quanto à real capacidade de atender ao objetivo de segurança e confiabilidade do suprimento. A capacidade de armazenamento – seguro do sistema – diminui em termos relativos e adiciona incerteza. Ora, mas o consumidor faz o que lhe cabe: paga a conta toda sem questionar, a despeito dos elevados encargos (distribuição intrassetorial) e tributos. (Cabe lembrar que eletricidade é um dos itens mais onerados da economia.) E mesmo assim, de tempos em tempos surge a preocupação com apagões e racionamentos.

Vale voltar e aprender com a história narrada por Rockman e Mattos: em 2001 o governo federal apenas percebeu a crise quando já era tarde. E os custos foram altos: 2pp de crescimento do PIB, segundo algumas estimativas. Isso sem contar a transição política, que aconteceu no Brasil e que é frequente em países que enfrentam crises de suprimento de energia elétrica. Não é que todos tenham sido pegos desavisados. O governo central recebeu uma mensagem, mas ficou Lost in Translation.

Na crise do racionamento, o preço de curto prazo chegou a atingir o valor unitário do Custo do Déficit de Energia Elétrica (CDEF). Essa variável é importante insumo para os modelos computacionais que definem o despacho (produção) energético otimizado da produção. Uma das recomendações da GCE foi de que se promovesse uma atualização metodológica e revisão dos valores do parâmetro. A última vez que fora estimada foi em 1988. Significa que os mecanismos de alocação ou programação do despacho (produção) à época estavam considerando um CDEF que não refletia o real custo de escassez da energia elétrica para a sociedade.

O comando da GCE de foi atendido mais de uma década depois. Conduzimos em dois momentos essa análise: uma primeira vez sem alteração metodológica e em uma segunda oportunidade, através de uma força tarefa que por cerca de três anos se debruçou sobre o tema. Inovamos e no FGV CERI utilizamos métodos empíricos capazes de capturar o custo econômico de não ter energia elétrica: a valores de 2017, o custo unitário do déficit ou escassez (por MWh) vai de R$7.028,01 a R$ 18.855,51 para cortes de até 5% e maiores que 20%, respectivamente. Esses valores são compatíveis com a experiência internacional. Os valores correspondentes pelos métodos utilizados no setor elétrico são de R$3.877,35 para reduções na disponibilidade de até 5% e a R$7.940,16, para maiores que 20%.

Supreendentemente (ou não) as estimativas do custo econômico representam quase o dobro do CDEF analisado pelos métodos tradicionais do setor elétrico e que são considerados nos problemas de otimização energética do setor. O que isso significa? Essa diferença ilustra a importância de que o governo federal de modo mais amplo invista na tradução das mensagens para não ficar perdido e com isso alterar nosso plano de voo na rota da recuperação econômica que tanto precisamos. A decisão do governo para o país deve considerar o benefício líquido esperado sobre a perspectiva social de assegurar acesso à energia segura e confiável para o desenvolvimento da economia. Ainda há tempo para tomar medidas e evitar crise. Mas pouco.

O artigo na íntegra também está disponível aqui

(*) Presidente do Conselho Empresarial de Energia da ACRJ e diretora do FGV CERI