A intenção expressa no recém-divulgado documento “Proposta para o aprimoramento do marco legal do setor elétrico” não se cumprirá a contento se ele não vier a sofrer profundas alterações. O texto divulgado oficialmente na semana passada peca, de início, em dois pontos: ele não toca no tema da sustentabilidade ambiental, que será o maior influenciador das decisões de toda área energética nas próximas décadas e desconsidera em boa medida o caráter sistêmico físico e empresarial do setor.
A razão disso parece ser o modo como a proposta foi elaborada: gente bem intencionada que ouviu demandas de agentes do sistema ou de suas associações. Estas diversas contribuições são grupadas e acrescenta-se um desalentador introito com pérolas do tipo “… maior granularidade temporal e espacial do preço, além de maior credibilidade na sua formação, com o máximo acoplamento possível da formação do preço com as decisões de operação…”. Cremos que o caminho certo passa longe deste método de fazer as coisas e também desta retórica.
Como proliferam neste setor associações e lobbies de segmentos empresariais (mais de 20!), não se deve estranhar as manifestações de apoio recebidas já no dia seguinte da publicação do alentado papelório, quando, vale dizer, mal houve tempo hábil para os agentes afetados analisarem e discutirem a fundo as mais de 50 páginas da proposta. Tem-se a impressão de que cada um pensa apenas em seu interesse, ignorando o todo, e, por isso, só examina a parte do problema que lhe afeta diretamente — desprezando as consequências nos demais elos da cadeia de produção.
O ônus caberá à Eletrobras e ao seu sistema de empresas, como fica claro no capítulo “Descotização”, onde se considera vender usinas em benefício do Tesouro (adoçando o caminho com um presentaço de dividendos para acionistas minoritários). Melhor seria pensar nas empresas que as possuem, vítimas até hoje de um abjeto clientelismo. Estas, em boa parte dos casos, deveriam ter seus processos de privatização acelerados, mas com atribuições do ponto de vista ambiental estendidas — viabilizando a gestão integrada das bacias hidrográficas reunindo usinas por grandes bacias e obrigando as empresas a gerirem o ambiente, especialmente nos temas ligados ao ciclo da água, vital para a sustentabilidade. Penso especialmente na grande oportunidade que será perdida de termos uma Chesf forte, atuando na gestão da Bacia do São Francisco. Uma pena.
Ônus também irão impactar os consumidores que, por sinal, apenas de modo superficial são mencionados. Eles são afetados por mais um aumento de preço para se manter um perverso sistema de subsídio a empresas ineficientes e, pior, a pagar sob a forma de bônus de outorga mais um dinheirão para o Tesouro.
E, finalmente, às custas de prorrogar por 30 ou 35 anos as concessões de hidrelétricas. Temos hoje que rever a existência desta camisa de força do passado, talvez cabível em outros tempos e sistemas. As concessões deveriam ser por 99 anos, renováveis automaticamente, desde que cumpridas metas e indicadores estipulados no contrato, todos de conhecimento público e passíveis de monitoramento. O atual prazo de concessão por 30 anos dá insegurança às empresas e dá ao regulador um poder geralmente mal usado ou travado por injunções políticas toda vez que se faz necessário ser acionado, como temos visto.
Como diz o título deste artigo, não será assim que o setor elétrico contribuirá para que o país marche virtuosamente para uma economia de baixo carbono e, ao mesmo tempo, recomponha seu equilíbrio econômico-financeiro e a sua credibilidade.
* Publicado no Jornal O Globo
José Luiz Alquéres