Artigos

E a velha compaixão?

E a velha compaixão?

Por Margareth Dalcolmo, médica, professora e pesquisadora da Fiocruz

Nesses tempos que vivemos, desafiados pela inteligência artificial, e revolucionados pela internet nas comunicações e no comércio de toda ordem, até nas relações pessoais, quando inclusive guerras se dão online, adjetivá-los como interessantes, violentos ou qualquer outro qualificativo é meramente eufemístico. Nunca antes vimos os dois limites, o tecnológico e o biológico, se confrontarem sem avaliar as consequências, que naturalmente arriscam a nossa sobrevivência no planeta. É assim que nesse cenário, de descobertas, de conflitos, de desastres climáticos, e tragédias, que compaixão parece soar aos ouvidos de hoje como uma palavra antiga, demodé, algo como pedir “por obséquio” ou chamar alguém de “fidalgo”, sobretudo se definida como em alguns dicionários, “um sentimento piedoso frente à tragédia de outrem”, (imaginem, piedoso!), e não como a sublime capacidade de se enternecer e se solidarizar, ativamente, frente ao sofrimento do outro.

Ajudar, prestar socorro, estar ao lado, não é apenas uma ação moralmente relevante, a colocar os contrários, justo e injusto, frente à frente. Mas muito mais que isso é um envolvimento de nossa sensibilidade humana, guiada pela melhor razão, a que independentemente do que se faça nos guia, porque precisa ser feito. Pensemos na parábola do bom samaritano, aquele que ajuda um homem caído na estrada, quando todos passavam ao largo, ignorando-o. O que faz dele um bom samaritano? Se ele o fez pensando que com esse gesto estaria assegurando seu lugar no paraíso, sua ação é menor porquanto equivale a um acordo tácito para obter algo em troca. Porém se o fez seguro de que essa é a coisa certa e inarredável a fazer porque é o que o torna humano à vera, estará mantendo o rito civilizatório, o que nos deveria ter conduzido até nossa sofrida contemporaneidade.

Quando testamos um novo medicamento e este se mostra promissor nos primeiros estudos, via de regra conseguimos oferecê-lo num sistema de uso compassivo (tradução de compassionate use) a um determinado número de pessoas, que irão também validar seu uso em modo de vida real. Essa aplicação, entretanto, não prescinde de termo de consentimento assinado pelo voluntário, de acordo com as melhores práticas em ciência. Se os resultados são positivos, o medicamento deve ser assegurado em prioridade a esses voluntários, uma vez que aprovado.

O que assistimos hoje, frente à destruição no estado do Rio Grande do Sul, apenas para dar um exemplo mais próximo a nós, é um conjunto de ações, desde algo nunca visto até a pandemia da Covid-19, ou seja, um voluntariado de nova qualidade e participação da iniciativa privada, de par com ações das esferas de governo, tentando minimizar os danos com ações organizadas, até o inacreditável, de pessoas que querem tirar proveito e auferir lucro com o maior sofrimento humano ali já visto, e que levará anos para se recompor, deixando um excesso de cicatrizes.

Por outro lado, quando em meio a tantas exigências prementes e dramas objetivos, pessoais e coletivos, prioridades que exigiria esforços concentrados e racionais nos investimentos de verbas parlamentares, observamos o Congresso se ocupar em modificar normas de vacinação em crianças, bem como mudar a regulamentação vigente quanto a dispositivos eletrônicos de tabaco, com argumentos que não resistem a uma análise minimamente criteriosa, entre outros absurdos.

José Saramago, sempre em sua cáustica lucidez, não nos deixa esquecer que “não prosperará como justo aquilo que não tiver o outro como seu objeto de preocupação maior“. É o que acredito. Para expiar nosso orgulho e arrogância prometeicos (Mito de Prometeu), o melhor que podemos fazer é, com alguma generosidade, e inteligência (re) conquistar uma real conexão entre nós mesmos, lembrando-nos de que somos seres pensantes, falantes, muito sensíveis e sobretudo racionais.

Artigo publicado originalmente no Jornal O Globo