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Fúria Arrecadatória

Fúria Arrecadatória

Por Luiz Gustavo Bichara – presidente do Conselho Empresarial de Assuntos Jurídicos e Estratégicos da ACRJ. Publicado no Jornal Valor em 26/1/2023

O PT assume o Governo Federal criticando o “apagão no planejamento estratégico do País” e prometendo prioridade absoluta na reforma tributária mediante “desoneração da produção (…) e simplificação do ICMS”. O leitor poderia perfeitamente achar que a notícia é recente, mas foi publicada em janeiro de 2002.

O tempo passa e quase nada muda, embora a promessa de reforma esteja de volta. É bem verdade que agora parece estar envolta numa áurea de inevitabilidade, diante do déficit de R$ 230 bilhões projetado para este ano. Não há fórmula mágica: ou aumentam-se os tributos ou reduz-se o custo da máquina estatal. Como o mero debate da segunda hipótese parece sempre interditado no Brasil, restou a majoração de tributo. Lamentavelmente o ajuste fiscal será feito somente pelo lado do aumento de receitas.

Nos primeiros dias de governo, o Ministro Fernando Haddad anunciou que lançaria um pacote. Muita gente acreditou que finalmente a discussão da reforma tributária seria impulsionada, mediante o prometido debate acerca do nível de carga tributária que o país aceita (ou aguenta) para manter seus gastos sociais.

Porém, o que se viu foram apenas medidas para sangrar o contribuinte. Tirante tímidas alterações no salutar procedimento de transação tributária, uma limitação de créditos de PIS/COFINS para compensar as perdas decorrentes da exclusão de ICMS de sua base de cálculo, e uma ou outra novidade de baixo impacto, o núcleo das medidas reside mesmo no terrível reestabelecimento do chamado “voto de qualidade” dos presidentes dos órgãos julgadores no âmbito do CARF.

Em 2020, através de uma opção legítima do Congresso, foi editada a Lei nº 13.988 alterando a sistemática do voto de qualidade para beneficiar o contribuinte em caso de empate no julgamento.

Agora o voto de qualidade foi restabelecido, mas com um discurso diferente. Chama atenção, nas palavras do Ministro, que não está apenas a se tratar da recriação de uma antiga e polêmica regra. É mais do que isso. Há uma alteração impactante que torna ainda mais controversa a medida, depondo contra o próprio futuro do CARF.

Para entender a crítica, é preciso voltar no tempo. Quando a OAB ajuizou ação no STF em face desta agora ressuscitada técnica de julgamento, a defesa da União durante todo o processo seguiu o racional de que os conselheiros representantes do Fisco são absolutamente imparciais, não pretendem obter receitas a qualquer custo e chamou de infantil a suposição de que os votos de minerva eram sempre contrários aos contribuintes (inexistência de suspeição por presunção).

Nenhum dos argumentos acima foi mencionado no discurso do Ministro. Na nova versão do voto de qualidade, anunciado dentro de um pacote de medidas para reverter o déficit e melhorar as contas públicas, não se teve nem o pudor de tentar disfarçar que o objetivo é apenas o aumento na arrecadação.

O aumento do estoque de processos no tribunal foi aliado à uma estimada perda anual de R$ 60 bilhões, e utilizado como fundamentos para a mudança. O Ministro parece desconhecer que, supostamente em razão da pandemia, o CARF praticamente paralisou suas atividades, o que contribuiu significativamente o congestionamento do tribunal (o que é curioso, vez que, ao que se tem notícia, todos os outros tribunais do Brasil funcionaram).

Desde abril de 2020, com a instituição da modalidade de julgamento virtual, com limites de alçada (que variaram entre R$ 1 e R$ 36 milhões), as pautas foram drasticamente reduzidas, situação que perdurou até o final de 2021. No primeiro semestre de 2022, face a adesão dos conselheiros da Fazenda à mobilização de auditores fiscais para regulamentação do polêmico bônus por autuações, quase não houve sessões.

Ninguém pode alegar que há falta de transparência. O recado foi dado e está claro, tanto para a sociedade quanto para os conselheiros que detém o poder do desempate. Para ser perfeito, faltou apenas uma singela alteração no site do tribunal que, até hoje, elenca como sua missão assegurar à sociedade imparcialidade na solução dos litígios.

Essa alteração provocada pelo pacote Haddad apenas demonstra a visão equivocada do Governo sobre a atuação do tribunal. A missão do CARF é a de contribuir com a segurança jurídica, aperfeiçoamento da legislação e redução dos litígios judiciais, sempre de forma imparcial e sem fins arrecadatórios.

Para equacionar as contas públicas, o pacote deveria ter cuidado de ampliar o instrumento da transação tributária, resultado que não é entregue pelo acanhado programa “litígio zero”. Existem gaps na sistemática atual que, se preenchidos, podem aumentar exponencialmente a base de negociação e a arrecadação. É o caso, por exemplo, de débitos declarados e não pagos (ainda não inscritos em dívida ativa), que não podem ser transacionados.

É preocupante que as primeiras medidas do Governo no âmbito tributário sejam impostas unilateralmente e sem qualquer debate com a sociedade civil. Apesar das inúmeras críticas à enorme litigiosidade existente, causa perplexidade que a principal iniciativa até o momento aumente a desarmonia entre Fisco e contribuinte.

A única conclusão certeira é de que, incapaz de reduzir despesas, o Governo quer conduzir esse ajuste fiscal apenas aumentando tributação, ecoando a feliz observação de Millôr Fernandes: “Me arrancam tudo à força e depois me chamam de contribuinte.”

Luiz Gustavo Bichara é sócio do Escritório Bichara Advogados e Procurador Tributário do Conselho Federal da OAB