Embaixador Marcílio Marques Moreira (*)
As crises sanitária e econômica escancararam o legado insepulto de duas manchas de nossa história: a escravidão e o patrimonialismo. A escravidão legou-nos a desigualdade, o racismo, a pobreza endêmica. A captura de políticas públicas de interesse geral, pelo corporativismo autocentrado, por sua vez, acentuou a assimetria patrimonial do Estado.
Mesmo com o desgoverno e falta de rumo das autoridades que deveriam orientar-nos nas crises gêmeas, o Brasil, tanto nas áreas da saúde quanto da economia, saiu-se melhor no enfrentamento à COVID-19, do que o inicialmente temido: colapso no sistema hospitalar, fome generalizada, desemprego levando milhões à pobreza absoluta. Mas, deixou muito a desejar. Mais de 150 mil óbitos, não chegam a surpreender dada a conivência de governança disfuncional e federalismo sem bússola.
O SUS, embora mal gerido e recente vítima de saqueadores, exerceu papel crítico, lastreado pela resiliência e de médicos e enfermeiros, homens e mulheres que, correndo altos riscos, lutaram bravamente. O programa econômico emergencial, por sua vez, assegurou renda de 600 reais por mês, ou mais, a dezenas de milhões de cidadãos e famílias, considerável alívio que, superando pessimismo doentio, permitiu a manutenção mínima de consumo e emprego e assegurou a sobrevivência de muitas iniciativas e empreendimentos, formais alguns, informais a maioria.
Ao contrário do esperado, a pobreza absoluta caiu a partir de junho, enquanto a taxa de poupança se elevou. Agora, vivemos incipiente reversão da pandemia e da recessão. É a transição, sempre semeada de incertezas e de difícil navegação. O novo, para nascer, exige esforço consistente, movido pela esperança em futuro melhor, e comedimento nas demandas, legítimas em períodos de crise, inviáveis na recuperação. O velho, sejam cinzas da crise ou problemas estruturais, exige alvo consensuado, além de bússola de como lá chegar. Cautela é essencial, imperdoável é o retrocesso, volta ao velho, tergiversação, tentação de furar o teto de gastos. Os próximos dois anos serão cruciais para superar, de maneira segura, as consequências da crise e assegurar reformas estruturais e regulatórias que reformulem a ineficaz e gulosa administração e propiciem modernização da economia, o equilíbrio Estado x mercado, austeridade fiscal e reinvenção dos ineficazes mecanismos de proteção social.
Será crucial construir ideia clara da obra a realizar e do fio condutor para alcançá-la. O Brasil do amanhã exige Ética do Futuro, com rigor e perseverança, virtudes cívicas capazes de aquecer a esperança e afastar ilusões de efêmera viabilidade. Não podemos desperdiçar o momento para transformar a crise em oportunidade, e corrigir erros do passado. Não podemos deixar-nos arrastar por incertos ventos globais. Urge captar as atuais transformações tecnológicas e comportamentais e as previstas para o mundo pós-pandemia. Há que preparar melhoras na saúde, educação, desigualdade, saneamento, segurança, mobilidade, cultura, sustentabilidade ambiental. O esforço há de ser abrangente e inclusivo, para superar polarização disruptiva, recuperar saúde fiscal e respeito internacional.
É preciso resistir a tentações descabidas e contraproducentes. A grave fragilidade fiscal só permite gastos inadiáveis. Há, entretanto, prioridades que não podem mais ser ignoradas, em especial o combate à pobreza, o que pressupõe trocar, por respeito e empatia, o preconceito contra a pobreza, a informalidade e as favelas. Na pandemia, demonstraram resiliência e capacidade de mobilização, contando, com ampla solidariedade, reveladora do surgimento entre nós, de cultura filantrópica.
É chegado, pois, o momento de preparar a transição. Não será possível perenizar custos extraordinários, incompatíveis com a realidade orçamentária. É da essência retomar a trajetória das reformas que assegurem ambiente de negócios atrativo, produtividade acrescida, atividade econômica retomada, segurança jurídica. É imperioso redesenhar o sistema de proteção social e seus programas dispersos, concentrando-os em plataforma inclusiva, focada nos mais pobres e na primeira infância. Ao mesmo tempo, há que eliminar subsídios e benefícios indevidos, liberando recursos para a nova realidade. Esta promoverá a agregação, em torno de renda básica universal, dos programas atuais. É essencial que a iniciativa se dissocie de considerações políticas, pois ela não se resume nem se justifica por ambições eleitorais, dos que a propõem e dos que a criticam.
O que importa é definir rumos e não desperdiçar a oportunidade de criar um Brasil renovado. Os brasileiros merecem país mais justo e generoso, menos cruel e medíocre, que saiba compatibilizar o nacional com o universal, os valores tradicionais e inovadores, o imediato com o duradouro.
(*) Presidente do Conselho de Políticas Econômicas da ACRJ.