Para o convidado do Conselho Empresarial de Política e Comércio Exterior da ACRJ, o professor emérito da Escola Superior de Guerra, Paulo César Milani Guimarães, as crises que “já surgiram, originadas de um processo político, econômico e social de comprometimento crônico vão se agravar bastante com os efeitos da pandemia”. A declaração do professor foi feita durante uma palestra virtual organizada pelo Conselho, dia 25 de junho.
Ao comparar a pandemia da Covid-19 com outras no decorrer da história, como a Gripe Espanhola, o professor destacou que a doença atual recai sobre uma civilização muito diferente daquela de outras pandemias, e a de agora pode gerar uma crise nos “sistemas de fluxos, de comunicação social, logo do controle social, e na formação do valor”, disse. Ele aprofundou esses conceitos durante a palestra.
Para Milani, o que temos hoje é uma “civilização de movimentos”, ou seja, ela deixa de ser um ordenamento com estruturas definidas (familiares, religiosas, hierárquicas) e localizadas e passa a ser um conjunto de fluxos, parte deles no tempo cronológico e parte no tempo real (fluxo de elétrons).”Esses fluxos representam movimentos cada vez mais rápidos, até a imediatidade, que consome de modo absoluto o tempo social do diálogo, da espera, do trajeto, em favor de formas de rapidez e precisão. A destruição do tempo dialogal e a anulação do espaço real destroem os dois fundamentos, um da História e o outro da Geografia, e sem essas aquisições não há política e, logo, não é possível a democracia – que é essencialmente filha do diálogo e da espera. A urbanização do espaço virtual e a emergência do tempo real apresentam aos homens uma nova civilização.”
Ele aponta também para as profundas mudanças na comunicação, que devem se acelerar com o uso mais intenso das redes no contexto pandêmico atual. “O controle social no passado era feito por grupos, como famílias, escolas, vizinhos, empresas. Coisas mais ou menos estáticas, que apresentavam e protagonizavam os papéis da pauta dos padrões ideais da cultura. No entanto, os grupos portadores da cultura se fragmentaram e diluíram, e a comunicação passou a assumir a função de controle social”, afirmou.
Segundo ele, essas mudanças decorrem da perda de um “princípio ordenador”, devido a nossa opção por uma moral leiga. Sem ele, os modelos de ordem e as consciências assim ordenadas seriam coisas do passado. “A comunicação é o controle e a mídia atualmente, do ponto de vista tecnológico, passou a ser uma coisa muito poderosa. Uma gestalt de luzes, cores e sons, operando nos dois lados do cérebro, impactando fortemente as pessoas. Seu impacto é tal que ela ganha força de realidade. Mas é uma realidade editada. Dessa forma, não pode haver uma discussão crítica de coisa alguma. São impactos sucessivos impondo uma ‘realidade’ sempre editada, compromissada, relativamente, com a veridicidade. Uma visão de mundo programada por terceiros. Pode ser mais uma desorganização grave a causar problemas à democracia”, complementou.
Outro ponto abordado pelo palestrante trata da formação de valor. Na visão de Milani, a tragédia da pandemia resta agravada pelos problemas preexistentes da ordem social e econômica vigente. “Vivemos um cinismo generalizado que vai ter por efeito um potencial destruidor muito grande, ainda mais em um país cuja ordem econômica não é mais suficiente para gerar emprego. Não há condições para a fábrica de camisas de Taubaté competir com a fábrica do Vietnã”, disse, apontando uma série de motivos, decorrentes das diferenças geopolíticas e econômicas e do custo da mão de obra no contexto euro-asiático, onde há 2,5 bilhões de trabalhadores com baixa remuneração.
Comentou que no Brasil um dos únicos fatores de produção que podemos estressar é o trabalho, aumentando as dificuldades da mão de obra que está em situação cada vez mais precária. Para ele, a redução de gastos com saúde tornou mais grave a cruel a atual pandemia. “A insuficiente reprodução do valor na economia levou-nos a política do cobertor curto, que é uma consequência da reforma da Previdência, que tira recursos da população mais pobre para gerar alívio fiscal. As consequências da insuficiência econômica grave de parte expressiva da população agrava a pandemia e é grave ameaça à democracia. Não devemos esquecer que tem sido a reprodução ampliada do valor que tem permitido a democracia e o desenvolvimento nas sociedades ocidentais”, acrescentou o professor.