Parafraseando Napoleão Bonaparte, a frase de Henrique Meirelles se aplica perfeitamente à necessária reforma do setor de gás natural no País. Deveria ser um mantra dos distintos agentes do setor que muitas vezes deixam de lado o objetivo principal de melhorar a competitividade do mercado de gás natural, não raro se perdendo em discussões que só prejudicam o setor.
Recentemente, Ministério de Minas e Energia (MME) e o Ministério da Economia têm manifestado intenção de lançar um conjunto de medidas para reduzir o preço do gás natural. O preço do gás natural ofertado no mercado é alto. De acordo com dados recentes da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o preço médio do MMBTU para consumidores industriais em 2018 era de cerca de US$ 14 no Brasil, frente a US$ 3,90 nos Estados Unidos e US$ 7,50 no Reino Unido.
Desde 2016, o governo federal trabalha em uma reforma para desenvolver um mercado competitivo de gás. Começou com o programa Gás Para Crescer. As propostas resultantes não chegaram a ser votadas. Ainda assim o MME e a Agência Nacional de Petróleo têm dado passos importantes para tentar dinamizar a indústria. Medidas infralegais foram sugeridas, sendo algumas implementadas.
Diversos fatores podem contribuir para uma redução significativa nos preços do gás. É preciso aumento da competição na oferta e garantir acesso livre e não discriminatório às redes – infraestruturas essenciais de transporte, processamento, tratamento e distribuição.
Na Europa, a implementação de programas de “Gas Release” foi um passo fundamental para a abertura do mercado, mas não produziu redução de preços no curto prazo. As empresas incumbentes reagiram em princípio, mas foram compensadas. Ao final houve aumento na geração de valor e redução de preços. Muitas se beneficiaram, expandindo atuação para além fronteiras. Faltou no estágio inicial capacity release, o que veio a ser corrigido em estágios posteriores.
Distribuição e Comercialização de Gás Natural
Um dos principais focos de resistência às propostas de reforma elaboradas e novas discussões vêm das distribuidoras; contudo, é fundamental planejar adequadamente a abertura nos estados. Cabe analisar as peculiaridades de cada área, bem como o potencial de demanda para o gás na indústria, geração de eletricidade, nos segmentos comercial, residencial e transporte.
A margem dos serviços de distribuição de gás é apontada como uma das principais barreiras ao desenvolvimento de um mercado livre de gás, e em especial, de novos projetos de térmicas a gás e da maior competitividade da indústria.
O valor final cobrado do usuário pelas distribuidoras inclui o preço do insumo, transporte e distribuição. A cadeia de geração de valor do insumo é dominada pela Petrobras. No transporte, regulado pela ANP, a empresa tem alienado participação. Já a distribuição é regulada pelas agências estaduais.
Nos estados, a Lei do Gás (2009) prevê a separação contratual entre a distribuição e comercialização de gás natural. Trata-se do by-pass comercial, no qual os usuários de gás continuam a usar a rede de gasodutos pertencentes à distribuidora local, remunerando-as pelos serviços prestados.
No modelo atual, os governos estaduais são Poder Concedente. A eles cabe decidir operar ou conceder a operação de distribuição do gás a um terceiro, mediante contratos de concessão com prazos de vigência entre 20 e 40 anos, em geral. Compete ao concessionário seguir o modelo previamente definido, cumprindo com suas obrigações e deveres. Ao mesmo tempo, devem ser respeitados seus direitos contratuais, garantindo o equilíbrio econômico financeiro.
Os governos estaduais quando outorgam uma concessão, tem a prerrogativa constitucional de decidir previamente o modelo da mesma. A modelagem envolve decisões quanto ao grau de exclusividade no atendimento a seus mercados, facultando ou não o acesso direto de grandes consumidores ao mercado. A definição do modelo é determinante para o valor da outorga.
Sob a ótica do mercado de gás – relação do governo/Poder Concedente e concessionário – a garantia de exclusividade de atendimento ao concessionário permite aumentar o valor da outorga no instante inicial. Quanto maior for o regime de exclusividade e o prazo de vigência do contrato, dentre outros aspectos, maior será o valor que o governo receberá pela outorga dos serviços na entrada ou momento em que é atribuída a concessão.
Uma análise que considere a combinação dos efeitos amplos – companhias de distribuição de gás, usuários, governos – revela que há potencial expressivo para alavancar o desenvolvimento de uma região facultando o acesso de grandes consumidores ao mercado de gás. O efeito final para os estados pode ser positivo, com aumento de arrecadação em consequência do estímulo local à atividade econômica. A escolha do modelo deve sopesar esses dois efeitos.
Estamos diante de uma grande oportunidade. Nos próximos 10 anos muitas concessões de distribuição estarão vencendo e outras, ainda operadas diretamente pelos governos ou pela Petrobras, poderão ser concedidas a operadores privados.
As concessões que estão finalizando poderão ter seus prazos ampliados ou ser relicitadas. Cabe(rá) aos detentores dessas concessões, no caso os governos, estabelecer as condições para o novo período contratual. Uma definição fundamental é o grau e ritmo de abertura na distribuição. Ainda que vários estados já tenham regulamentado a figura do consumidor livre, na prática os limites mínimos estabelecidos para que um consumidor possa fazer a aquisição direta inviabilizam esse exercício. E mesmo que fosse possível, parte da dificuldade reside na falta de concorrência na oferta do insumo e nas barreiras ao livre acesso ao sistema de transporte.
No cardápio de propostas, pode-se lançar mão de soluções graduais, com metas de abertura no tempo – mas acordadas e conhecidas antecipadamente, ou negociadas por meio de gatilhos de investimentos. Outra opção é priorizar os aspectos centrais da questão e de rápida implementação, deixando aqueles de menor impacto e maior complexidade para um momento seguinte. Pode-se deixar menos amarras na lei, permitindo ajustes na regulação em razão da evolução do grau de abertura do mercado. Há notícias de que negociações entre Tesouro Nacional e estados poderiam acelerar esse processo
Considerações Finais
É certo que o custo do gás natural no Brasil é alto. E são pertinentes as recentes declarações do Ministro da Economia de que é necessário aproveitar a disponibilidade de gás de produção nacional significativamente mais barato para promover competitividade da indústria e do país.
A perspectiva de produção de gás superior à demanda nos próximos dez anos, a estratégia de saída da Petrobras das redes de transporte e distribuição e uma abertura na comercialização do gás transparente e orientada para o desenvolvimento do mercado pavimentam o caminho para a concorrência no setor e para o alcance deste objetivo.
Em geral, reformas são implementadas diante da percepção de que há benefícios líquidos; ou seja, vale a pena compensar perdas de alguns grupos de agentes no curto prazo, em troca de benefícios maiores para a sociedade a médio e longo prazo. Mudanças na competitividade no setor de gás natural ilustram essa ideia.
Ainda que alterações profundas no setor requeiram urgência, um debate claro, informado e transparente é fundamental para o sucesso em um momento em que o tempo é tão valioso.
Publicado no Portal EPBR em 3 de maio de 2019.
Joisa Dutra
Presidente do Conselho de Energia da ACRJ, diretora do FGV CERI, ex-Diretora da ANEEL e Doutora em Economia pela EPGE/FGV. Membro do Future of Energy Council do World Economic Forum