Embaixador Marcílio Marques Moreira (*)
As crises sanitária e econômica escancararam o legado insepulto de duas manchas de nossa história: a escravidão e o patrimonialismo, isto é, a captura de políticas públicas de interesse geral, por grupos que privilegiam interesses próprios. Esse desequilíbrio acentua-se, ainda, pelo federalismo crescentemente assimétrico e incompleto da estrutura patrimonial do Estado brasileiro, apesar da sua solidez institucional.
São fatores que contribuem para alimentar brutal desigualdade, não só em termos de renda, se não também de acesso à infraestrutura que as modernas sociedades costumam oferecer aos cidadãos: saneamento, educação, saúde, segurança e transporte público.
O Brasil, apesar dos incompreensíveis desgoverno, falta de rumo e de empatia das autoridades que deveriam orientar, pelo exemplo e conduta inspiradora, as veredas a seguir, tanto nas áreas da saúde pública, quanto da economia, saiu-se melhor no enfrentamento à COVID-19, do que inicialmente temido: colapso do sistema hospitalar, fome generalizada, desemprego empurrando milhões de pessoas à pobreza absoluta. Mas deixou muito a desejar – a realidade de mais de 100 mil óbitos, em larga escala devidos à ineficaz coordenação entre os setores responsáveis – não nos deixa calar.
O SUS, embora mal gerido e há décadas saqueado por elementos sem escrúpulo, exerceu papel crítico, dada a resiliência e a dedicação de médicos, enfermeiros e assistentes – homens e mulheres que, mesmo correndo o risco de contaminação, lutaram bravamente. O programa econômico, por sua vez, assegurou renda emergencial de 600 reais por mês, ou mais, a milhões de cidadãos e famílias, apesar da frágil situação fiscal da União, estados e municípios. O montante repassado, até aos “invisíveis”, representou considerável alívio e, superando pessimismo às vezes doentio, permitiu a manutenção de um mínimo de emprego e consumo, contribuindo para a sobrevivência de inúmeros empreendimentos, formais alguns, informais a maioria, e o sustento de milhões que, sem essa ajuda sofreriam mais ainda.
Levantamento do IBRE/FGV, divulgado recentemente, mostra que, ao contrário do esperado, a pobreza absoluta (US $1,9 mensais) caiu em junho deste ano a 3,3% da população, comparado com os 4,2% em maio, o que levou também ao aumento da taxa de poupança. Outra pesquisa, esta do IBGE, revelou que o número de maio já fora o melhor desde a década dos 80, só igualado em maio de 2014, às vésperas da brutal recessão que se seguiu. Enfrentamos, agora, o que parece ser incipiente reversão da pandemia. Estamos mais perto de um período de transição, sempre semeado de incertezas e, portanto, de difícil navegação. O novo, para nascer, exige esforço consistente e esperança de um futuro melhor, além de comedimento na formulação de demandas legítimas, naturais em períodos de crise, mas inviáveis no caminho íngreme da recuperação. O velho, por sua vez, sejam cinzas da crise ou problemas estruturais por ela evidenciados, exige abordagem racional e alvo consensuado, além de bússola de como lá chegar. Estamos iniciando período em que a cautela é essencial. Imperdoável seria retrocesso, volta ao velho, tergiversação quanto ao caminho a trilhar.
Para viabilizar tal objetivo, será crucial construir ideia clara da obra a realizar e do fio condutor a perseguir. O Brasil do Amanhã exige Ética do Futuro, conduzida com rigor e perseverança, virtudes cívicas capazes de aquecer a esperança e evitar ilusões de efêmera viabilidade.
Para transformar a crise em preciosa oportunidade de consertar crassos erros passados e ainda captar as transformações positivas que o mundo está vivenciando hoje, e prevendo para o amanhã, há que preparar, com senso de urgência, mas sem precipitação, melhoras prioritárias na saúde, educação, desigualdade, pobreza, saneamento, transporte público, cultura, e sustentabilidade ambiental. Há de ser esforço denodado para superar polarização política disruptiva, recuperar saúde fiscal, e o respeito internacional, condições sine qua non da capacidade estratégica e operacional do Estado. Temos de nos dedicar aos setores em situação mais grave, o que além de aportes fiscais, exige mais bem focada alocação das verbas orçamentárias, eficaz gestão e repúdio radical a qualquer forma de desperdício e corrupção.
É indispensável resistir a pressões descabidas e a tentações fora da realidade que, no passado, se revelaram contraproducentes. A fragilidade fiscal é de natureza quase inédita e não permite gastos exagerados. Não deve, entretanto, desviar-nos de prioridades que não podem mais ser ignoradas. Refiro-me ao combate à pobreza, que pressupõe trocar, por respeito e empatia, o prevalecente preconceito contra a pobreza, a informalidade e as favelas. Estas foram construídas pelos pobres por falta de opções e representam, hoje, significativo patrimônio acumulado. Na pandemia, demonstraram insuspeita resiliência e capacidade de mobilização, que lhes pouparam desastre ainda maior. Felizmente, encontraram eco em inesperado surto de solidariedade e filantropia, boa novidade reveladora do surgimento, entre nós, de uma cultura de doação, inclusive por parte de grupos e famílias de maior potencial patrimonial. Não faz mais sentido querer erradicá-las, urge reinventá-las.
É chegado o momento de nos preocuparmos com o período de transição. Não será possível eternizar a concessão de benefícios extraordinários e a flexibilização de controles fiscais, indispensáveis em ocasiões de crise, mas incompatíveis com restrições orçamentárias incontornáveis em momentos de busca de retorno à normalidade. É da essência, retomar a trajetória das reformas estruturais e de medidas regulatórias infraconstitucionais, que nos assegurem ambiente de negócio atrativo e atividade econômica retomada, inclusive, com segurança jurídica. Não podemos tergiversar nessa busca inadiável, mesmo sabendo que o caminho não será fácil, as medidas a tomar, complexas e os resultados, incertos.
Em artigo no início deste ano, o casal de professores do MIT e ganhadores conjuntos do prêmio Nobel de Economia no ano passado, Abhijit Banerjee e Esther Duflo, autores do aclamado livro, também de 2019, Uma Boa Economia para Tempos Difíceis, concluíram que inexistindo uma poção mágica para acelerar o desenvolvimento, o melhor é logo “enfocar diretamente aquilo que o crescimento é suposto melhorar, o bem estar dos pobres”.
De fato, é imperioso redesenhar nosso sistema de proteção social, constituído por conjunto de programas dispersos e mal focados. Há que concentrá-los em um programa só, mais focado nos mais pobres e nas crianças de 0 a 6 anos. Ao mesmo tempo, há que eliminar amplo painel de subsídios e benefícios capturados em favor dos mais aquinhoados, o que liberará recursos para cobrir os custos de novo sistema, mais justo, que teria como chave a agregação de muitos e dispersas formas de proteção social em torno de renda básica universal. É desafio instigante, a ser implementado gradualmente, tanto em cobertura, foco e montante. É importante dissociar, por sua vez, a iniciativa de pressões corporativas e ambições eleitorais, quer dos que a propõem, quer dos que a criticam. O tema vem sendo estudado em muitos países e instituições independentes, sem conotações ideológicas, de esquerda, centro ou direita. Muito embora possa vir a ter consequências eleitorais, tal sistema não se resume, nem se justifica por elas. É, sim, consistente passo em direção ao Bem Comum, como tem sido crescentemente defendido aqui e no exterior por reconhecidos conhecedores das melhores práticas de construção de políticas públicas de proteção social.
O que importa neste momento de definição de rumos a trilhar é não desperdiçar a preciosa oportunidade de criar um Brasil renovado, como legítimo legado das cruéis crises que castigaram o povo. Ele, merece um país mais justo e generoso, menos cruel e medíocre, que saiba compatibilizar o nacional com o universal, os valores tradicionais com os inovadores, enfim o Brasil com que todos sonhamos.
Rio de Janeiro, agosto de 2020.
(*) Presidente do Conselho Empresarial de Políticas Econômicas da ACRJ