Nos últimos tempos, as páginas das editorias internacionais dos jornais ao redor do mundo repetem, quase que diariamente, um neologismo: Brexit. Desde que os britânicos optaram, em referendo realizado em 2016, pela saída do Reino Unido da União Europeia, o governo britânico vem tentando negociar uma saída do bloco que agrade todos os lados. A tarefa da primeira-ministra da Grã-Bretanha, Theresa May, é ingrata. Líder do Partido Conservador, May conseguiu um acordo que evitou – ou adiou – o pior: a saída do país do bloco passou para dia 31 de outubro, evitando o que os ingleses vêm chamando de “hard Brexit”, ou seja, uma retirada sem acordo, que traria consequências imprevisíveis para o Reino Unido.
Na quarta-feira, 24 de abril, o Conselho Empresarial de Política e Comércio Exterior da Associação Comercial do Rio de Janeiro recebeu três especialistas no assunto para explicarem motivações, efeitos e consequências não só para o Reino Unido, mas para o mundo. E é claro, o possível impacto na relação do Brasil com o reino de Elizabeth II em um cenário pós-Brexit. O Benemérito e Presidente do Conselho, Eduardo Lessa Bastos, apresentou os convidados para a plateia, que lotou o auditório Ruy Barreto da Casa de Mauá.
Saída do Reino Unido do bloco europeu é oportunidade para o Brasil
O professor do curso de graduação em Relações Internacionais do IBMEC, Marcio Sette Fortes, falou principalmente sobre as consequências do Brexit e como o Brasil pode aproveitar a oportunidade para recompor sua relação comercial com o Reino Unido. “À medida que o Brexit avança, o Brasil devia também avançar nas negociações”, afirmou.
Para analisar o cenário, Sette Fortes partiu do ponto de vista do comércio exterior. “Quando falamos do Brexit, nos referimos a uma desvinculação do Reino Unido de um conjunto de obrigações que é muito mais amplo do que parece. Isso não é algo que se faça de uma vez, o que explica a demora para que haja uma saída negociada que evite uma série de problemas para o próprio Reino Unido diante do seu principal parceiro comercial, a União Europeia”.
Segundo ele, sair da União Europeia significa não ter mais acesso às vantagens aduaneiras e tarifárias dadas aos membros do bloco. Dessa forma, os produtos britânicos vão enfrentar barreiras tarifárias das quais atualmente são isentos, enquanto a Inglaterra permanece no “clube”, como ilustrou Sette Fortes. A saída para o Reino Unido, nesse caso, seria fazer parte de uma nova configuração do comércio internacional, que poderia, inclusive, envolver o Brasil.
Dessa forma, o Brasil poderia potencialmente se livrar de entraves que envolvem atualmente a relação do Mercosul com a União Europeia, abrindo negociações diretas com o Reino Unido. “Essa possibilidade de negociação direta poderia promover teoricamente uma abertura maior aos produtos brasileiros no mercado britânico”, explicou.
O Reino Unido, ao perder os benefícios por fazer parte do bloco, precisará, de acordo com Sette Fortes, pleitear a entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC). “Ao pleitear sua entrada na organização, o país terá que apresentar um projeto tarifário também. O Brasil poderia aproveitar este momento para colocar seus produtos em melhores condições naquele mercado, uma vez que estará livre da interferência da União Europeia”. No entanto, o professor ressaltou: “Muitos outros países já saíram na frente nessa corrida de negociação com o Reino Unido. Naturalmente, essa é uma corrida onde quem chega por último fica sem espaço no market share”.
Perdas do Brexit podem pequenas diante de potenciais ganhos internacionais
Membro do Conselho Diretor e do Conselho Empresarial de Política e Comércio Exterior da ACRJ, professor do curso de graduação em Finanças do IBMEC e sócio da Probatus, Marcelo Henriques de Brito comentou os dilemas que Reino Unido atravessa no processo do Brexit.
O palestrante lembrou a divisão do país na decisão pela saída do bloco europeu. Os resultados do referendo evidenciaram a tendência de Escócia e Irlanda do Norte de permanecerem na União Europeia, enquanto a maior parte do restante do Reino Unido optou pela saída.
Brito levantou aspectos relevantes para a discussão sobre o Brexit, considerando as diversas formas de interação e interseção entre regimes políticos e sistemas econômicos. De acordo com o palestrante, a União Europeia poderia ser classificada no modelo “ativismo governamental”, que tende a apoiar a assistência e intervenção governamental com o argumento de ser mais eficaz para combater desigualdades e assegurar o bem-estar coletivo.
Ele destacou que, apesar dos aspectos positivos do ativismo governamental, o modelo acaba gerando carga tributária e regulamentação maiores e, eventualmente, problemas de governança. Porém, segundo o consultor, este modelo “esgarça” a estrutura do capital ao “descapitalizar o capitalismo” com “risco político” pela incerteza econômica. “Neste contexto, capitalismo ‘sem capital’ e ‘com receios’ gera estagnação”, explicou. Assim, ele apontou uma distinção entre a União Europeia e o liberalismo britânico, que permitiu o cultivo de ideias tão divergentes quanto de pensadores da economia como Adam Smith, John Keynes e até do alemão Karl Marx, cuja obra foi influenciada e possibilitada pela circunstâncias vigentes e recursos britânicos.
Brito reconhece que o fenômeno do Brexit decorre também da própria alteração da identidade e coesão social britânica, que estaria em um acelerado processo de ‘reavaliação’, após os movimentos de descolonização das últimas décadas – com o retorno dos britânicos de antigas colônias – em contraponto a chegada dos imigrantes de países sem vínculo com a cultura britânica.
A partir dessa premissa, o professor analisou o quadro do capitalismo britânico atual de forma assertiva. “Os britânicos foram os primeiros a enxergar a importância do comércio exterior. Agora, vislumbram que, na nova revolução dos negócios, com formas diferentes de financiar e de regulamentar, é preciso pensar, decidir e agir de maneira diferente. Possivelmente, o dinheiro que os britânicos teriam que pagar para sair da União Europeia pode ser ‘peanuts’ diante dos ganhos possíveis de serem obtidos com atividades pioneiras no mercado financeiro internacional”.
Fatores históricos que possibilitaram o Brexit
Fundador e coordenador do curso de graduação em Relações Internacionais do IBMEC, José Luiz Niemeyer dos Santos Filho abordou o Brexit do ponto de vista da Inglaterra e tentou analisar as causas históricas para o acontecimento. “Penso que o fenômeno do Brexit tem uma explicação fundamentalmente histórica”, afirmou.
Santos Filho lembrou que, com o fim da Guerra Fria, teóricos como Samuel Huntington afirmam que foi criado um mundo unimultipolar “Sob o governo Bill Clinton, já pós-Guerra Fria, você tem um momento de proximidade entre os países, mas com os EUA impondo a chamada ‘Pax Americana’, um sistema internacional centrado da superpotência norte americana”. De acordo com o professor, é nesse contexto que a Inglaterra percebe que é interessante manter uma aliança estratégica com os EUA no mundo pós queda da URSS. “O fim da Guerra Fria é tão grave que talvez seja o principal motivador do Brexit”, defendeu.
O evento do 11 de setembro também foi determinante na opinião do professor. “Por mais que o ataque terrorista a Nova York tenha atingido o coração dos EUA, foi uma oportunidade para que, a partir do governo George W. Bush, o país reafirmasse seu poder como superpotência. A Inglaterra segue os EUA de forma clara na chamada Guerra ao Terror, construída pelo supracitado presidente norte-americano”, afirmou, ressaltando que essa aproximação não foi apenas no campo militar, via Otan, mas também nos acordos bilaterais entre EUA e Inglaterra.
A crise de 2008 seria um outro fato relevante para o Brexit. “A crise não teve origem no capitalismo voraz dos EUA. A crise de 2008 teve caráter financeiro, sendo criada pelo estado norte-americano, que fomentou a compra de imóveis no país com juros baratos. Ela começou no lado financeiro e escalou para o lado econômico, atrapalhando a estrutura produtiva norte-americana, europeia, brasileira, asiática e de diversos países”.
Segundo o professor, a Inglaterra percebeu que crises como esta podem ocorrer de tempos em tempos. Desta forma, talvez fosse vantajoso para o país não ficar atrelado, do ponto de vista macroeconômico, com a União Europeia. Novamente, a Inglaterra preferiu a aproximação com os EUA, já que “é para ficar com alguém nesse baile que está muito indefinido”. Mesmo com a crise originária dos EUA, a Inglaterra achou interessante essa aproximação, dado que os EUA foram os primeiros a saírem da própria crise, como defende o professor.
Mas o professor vai mais longe, apontando como variável importante também a ação da Rússia na Crimeia. “Putin contrata milicianos, invade e toma metade de um país em pleno século XXI. Nesse contexto geoestratégico, me reaproximo da União Europeia ou dos EUA? Foi a pergunta que a Inglaterra se fez”. Para Santos Filho, a Inglaterra ficar atrelada aos interesses da UE, enquanto França e Alemanha – líderes do bloco – questionam os posicionamentos dos norte-americanos, não é interessante para o país.
Por fim, a onda de imigração forçada de norte-africanos e muçulmanos para a Europa também seria, na visão do professor, outro fator chave para o Brexit. “Este movimento incomodou muito a estrutura econômica do Reino Unido, impulsionando o Brexit”, afirmou.
Santos Filho enumerou outros eventos menores e destacou que todos estes fatos demonstraram aos ingleses que para a estrutura de poder do Reino Unido o melhor seria ficar de fora de um bloco atrelado a uma movimentação pouco previsível. “É fluido demais para a Inglaterra, um país que sempre teve sua agenda de poder muito clara, ficar atrelada à União Europeia”, concluiu.