Queria ver o Brasil acompanhar, adiantar-se ao pulsar da História. Angustiava-o ver malbaratadas as condições indispensáveis à viabilidade do projeto brasileiro
Em momentos de turbulência político-econômica e crise ética, cabe revisitar a lição do passado e o legado da vida e obra dos que podem servir-nos de exemplo:
Junho de 1964, San Tiago Dantas tomou o caminho tantas vezes percorrido por Péguy. Súbito, surge no horizonte o perfil da Catedral de Chartres. Recita, então, o verso do poeta sobre a Notre Dame, cujo oitavo centenário fora comemorado na véspera: Reina no coração de Paris, “com majestade e retidão de alma”.
Ao chegar, penetramos, comovidos, a Catedral de Chartres. À nossa frente legião de crianças de branco, caminham para a primeira comunhão. Ressoa, grave, o órgão: a infância diante do eterno, a frescura das roupas sob a luz dos vitrais, rostos alegres, tons severos da pedra e da música. San Tiago, discretamente, enxuga uma lágrima. Sabia apreciar a beleza e desprezava o mesquinho. Pensava em grandes linhas; no xadrez da vida — e da morte — jogava muitos lances à frente.
Seu desprezo pelo acessório não afastava o zelo pelo detalhe. Percorre as fachadas, admira a estatuária e os vitrais. Mas o cansaço o obriga a repousar um instante. Quer visitar ainda Illiers, o Combray da infância de Proust.
A Igreja do vilarejo, a casa de Léonie e Françoise, o jardim “do lado de Swann”, proporcionam reencontro do tempo perdido. Pergunta pelas aubépines, já haviam murchado: em vida, não lhe seria dado ver desabrochar muitas flores que semeara.
A irremediabilidade do tempo foi tema permanente de reflexão. Era o que o fascinava em Proust, consciente da lição de Epicteto: “Por que temer a morte? Não interessa o quanto vivemos, mas sim como vivemos.”
Superara o saudosismo para se entregar à ação modeladora da realidade. Não se resignava a ser observador. Queria atuar. Reformador por excelência, dedicou-se à práxis, como o Fausto, que substituíra “No principio era o Verbo” por “No princípio era a Ação”.
Queria ver o Brasil acompanhar, adiantar-se ao pulsar da História. Angustiava-o ver malbaratadas as condições indispensáveis à viabilidade do projeto brasileiro, pela incompetência, ineficiência, falta de coragem e incompreensão da urgência das inadiáveis reformas estruturais.
Entristecia-o ver as elites despreparadas para liderar, mas animava-o a capacidade do povo. A partir dessa confiança, redobrava a pregação para “as elites se modernizarem e modernizarem o país”. Para ele, Portugal e Brasil haviam perdido oportunidade histórica ao se dissociarem do Iluminismo e da Revolução Industrial. Temia que o subdesenvolvimento na era cósmica pudesse resultar em perda ainda mais grave.
Humanista no sentido pleno da palavra, não escondia a predileção pelos espíritos globais, Da Vinci e Goethe entre eles, em que admirava o veio artístico, o espírito criador, a paixão pelo progresso científico.
Inspirava-se na obra de Cervantes: “o Quixote nos transmite lição de purificação do mundo pelo heroísmo, não por um heroísmo de tipo hercúleo, mas por outro feito de fé inigualável, pureza perfeita, e um atributo que a todos resume — o dom de si mesmo”.
Não esquecia, entretanto, a responsabilidade política, mesmo no último ano de vida, o truncado 1964. Em face do espectro da morte, recitava García Lorca:
“Ay Antoñito el Camborio
digno de una emperatriz
acuerda-te de la Virgen
porque te vas a morir.”
Ao mesmo tempo em que se dedicava à leitura dos estoicos e se iniciava, maravilhado, na de Teilhard de Chardin, delineava roteiro de obra que, infelizmente, não chegou a redigir: “Ideias-mestras para o projeto brasileiro”.
Cada vez mais se concentrou em linhas-mestras, em torno das quais pensava viável vertebrar as etapas do processo de desenvolvimento. Lembrava Rilke: “Só à noite é que, às vezes, se pensa conhecer o caminho”. Caminho que o engajaria cada vez mais na busca do bem comum, da paz mundial e da transcendência pessoal.
Marcílio Marques Moreira
Ex-ministro da Fazenda e Presidente do Conselho Empresarial de Políticas Econômicas da Associação Comercial do Rio de Janeiro
*Artigo publicado no Jornal O Globo