Artigos

Responsabilidade Social vs. Maturidade Corporativa

Paulo Eduardo Roscoe Bicalho
Paulo Eduardo Roscoe Bicalho

Responsabilidade Social vs. Maturidade Corporativa

A catedral de Notre Dame em Paris foi quase totalmente destruída devido a um incêndio. No dia seguinte já havia movimentos de indivíduos e organizações voluntariamente garantindo doações milionárias para sua reconstrução. Antes da tragédia já se tinham doações em fluxo constante para a manutenção do prédio, tudo consensual, motivado por fé, consciência do significado profundo deste monumento e, mais pragmaticamente, por entendimento de que a Notre Dame é um dos mais eficientes vetores do turismo parisiense, que gera bilhões em divisas.

No Brasil algumas personalidades começaram a questionar a inércia dos cidadãos ricos e organizações empresariais em ter o mesmo desprendimento financeiro para acudir o Museu Nacional, destruído em setembro de 2018 também por um incêndio. Por que esta diferença de atitude? O Museu Nacional não tinha significado? Não é importante como monumento histórico? Seu acervo seria desprezível?

Em artigo recente publicado no jornal O Estado de São Paulo e no site da Associação Comercial do Rio de Janeiro – ACRJ, tivemos a oportunidade de argumentar que as leis de incentivo fiscal em benefício da cultura, esporte e outros temas de interesse público eram uma alternativa liberal, considerando o grau de maturidade das empresas e cidadãos quanto aos seus papéis nestes temas e também considerando a ineficiência do Estado em cuidar sozinho de milhares de iniciativas em todo o território nacional.

As leis de incentivo são de fato uma alternativa liberal, no sentido de que há minimamente algum consenso entre a parte produtiva, privada e a administração pública, com ganho para a sociedade e sem prejuízo para os controles necessários. Mas as leis de incentivo acabam se tornando muletas, atrasando ou até mesmo impedindo que os indivíduos – inclusive aqueles que comandam grandes corporações – entendam os seus papéis no desenvolvimento civilizatório da sociedade a que pertencem e para a qual oferecem seus produtos/serviços.

O laureado economista e filósofo Thomas Sowell diz em seu livro, crítico às mundialmente populares ações afirmativas, que “Um programa temporário para eliminar uma condição que existe há séculos é quase uma contradição de termos.” E o que temos no Brasil são muitas décadas de estatismo onde o papel do setor produtivo, minimamente livre, foi o de pagar impostos para sustentar o sistema. Isso contribuiu para uma cultura onde o indivíduo não se sente diretamente responsável e imputa ao Estado a atribuição exclusiva por todo o serviço de contribuição para o bem estar social.

Na década de 90 o economista e produtor cultural Ivan Fortes concedeu entrevista à revista do Sistema Fecomercio do Rio de Janeiro. O título foi “A Lei de Incentivos não é para Sempre” e traduzia a sua crença de que “…a lei de incentivo é como um pai que ensina o filho a andar de bicicleta. Nenhum pai fica amparando o filho para a vida toda.” Fortes certamente tinha uma visão de que os incentivos dariam um empurrão necessário para despertar a consciência do empresariado quanto aos benefícios sociais promovidos pela cultura e como isso contribuiria para a sustentabilidade dos seus negócios no longo prazo. Afinal, que mercado prospera em uma sociedade pobre de recursos, de modelos, de referências, de valores e de ambição? Uma vez despertas, as empresas continuariam com os investimentos culturais mesmo sem os incentivos, mas apenas por terem experimentado e amadurecido o suficiente para entenderem o seus papéis e compromissos com a sociedade.

Mas, o que aconteceu de fato nestes quase 30 anos de lei de incentivo – Lei Rouanet (1991) e as demais que a seguiram – foi que as empresas viram uma oportunidade de desafogar os orçamentos de marketing, promovendo suas marcas utilizando-se dos benefícios fiscais. Segundo Sowell, um efeito mais do que previsível, como os das ações afirmativas, que acabaram por prejudicar quem deveriam beneficiar. O grau de maturidade dos indivíduos e empresas que devia ter sido alavancado no processo de incentivos mudou muito pouco, ou foi subjugado por interesses mais rasos. O que vimos foi o surgimento do fenômeno do socialwashing (derivação do greenwashing) que nada mais é do que o fingimento e afetação teatralizados em peças publicitárias e balanços sociais que enaltecem as ações de empresas, mas que na verdade não significaram quase nenhum esforço financeiro e dedicação estratégica que impactem efetivamente o cenário social e o processo civilizatório. Basta ver que rarissimamente as empresas se unem e se organizam em esforços conjuntos e mais eficientes em prol de alguma política pública vencedora. Todas querem promover a sua marca com exclusividade, mesmo que atreladas a projetos culturais, sociais, ambientais, esportivos que em nada promovem o bem estar social com alguma efetividade. Fortes, hoje, deve estar desapontado.

Imersos neste ambiente, indivíduos e gestores de grandes corporações, ainda que sensibilizados por uma tragédia cultural e histórica de grande significado, como o incêndio do Museu Nacional, não enxergam o seu papel na conservação da história do seu próprio país, uma vez que julgam ser este papel exclusivo do Estado, e optam por centralizar recursos no eixo Rio-São Paulo e para grandes produtores, que realizam eventos pontuais de grande porte, pois geram maior visibilidade. Não atuam de forma sustentável, em benefício da sociedade de forma descompromissada, a não ser com o amparo artificial de uma Lei de Incentivo, sem abrir mão das contrapartidas correspondentes e lançam o “nobre gesto” em seus respectivos balanços sociais e em campanhas publicitárias. Pior: recebem premiações de entidades de classe, das associações dos seus setores e, pasme, da própria administração pública.

Então, onde deveríamos estar se os indivíduos e corporações tivessem amadurecido e se conscientizado sobre seus papéis como vetores e atores diretos do desenvolvimento social? A política de patrocínios de uma empresa, por exemplo, não deveria estar subordinada à uma diretoria ou departamento de comunicação, mas diretamente ligada ao CEO/Presidente. O dever do principal executivo é orientar a visão de longo prazo da organização e incentivar estratégias e ações que estejam comprometidas com esta visão, intimamente conectada com o desenvolvimento social, com ações articuladas (quase nunca isoladas) com outros parceiros, dentro e fora da cadeia produtiva na qual sua empresa está inserida.

Isto significa priorizar projetos estruturantes, interconectados e articulados com outras entidades dos setores privado, público, da Academia e do terceiro setor. Em última análise, as ações devem estar alinhadas aos indivíduos que compõem e movimentam a sociedade e aos seus anseios, sem ter como finalidade o “branding”, que passaria a ser um benefício extra. É preciso entender que as Leis de Incentivo são mecanismos de investimento direcionados a projetos esportivos e culturais, mas que funcionam como sustentáculo para outras políticas públicas como saúde, educação, segurança e até mesmo a economia. Ao invés de pulverizar investimentos em uma miríade de projetos soltos, deve-se concentrar os recursos financeiros e humanos em plataformas eficientes e efetivas nas suas áreas de operação, capazes de fazer realmente a diferença na vida das pessoas, devolvendo aos cidadãos a responsabilidade social delegada desastradamente na forma de monopólio ao Estado.

Um exemplo de como funciona uma sociedade com consciência amadurecida do velho continente, sobre a relação entre responsabilidade social e a sustentabilidade nos negócios privados foi narrada, certa vez, por uma concertista brasileira. Ela relatou que após sua apresentação, que havia sido contratada por uma multinacional alemã, o CEO foi fazer o agradecimentos a ela nos camarins, onde tiveram uma conversa. Ele contou que um dos critérios para a matriz alemã definir a cidade que sediaria sua subsidiária no Brasil era que houvesse por lá uma sinfônica em operação. Diante da indisfarçável estupefação da concertista ele emendou a explicação de que este critério era importante porque definia, de forma bastante assertiva, o caráter da sociedade com quem iniciariam um relacionamento de longo prazo. Obviamente a empresa passou a patrocinar a orquestra da cidade antes mesmo de terminar a instalação da fábrica.

Da mesma forma no esporte é comum vermos grande parte das produções e captações de recursos por meio da Lei de Incentivo concentradas em projetos pontuais, de grande porte e poder midiático. Caso estivéssemos com a maturidade bem desenvolvida para estes investimentos, não faltariam recursos para projetos de base, como preparação de jovens, treinamento de atletas aspirantes e equipes técnicas. O investimento em grandes eventos não precisa se dar em detrimento do investimento em base e infraestrutura, deveriam ser complementares. Porém, a falta de maturidade canaliza os recursos exclusivamente para os eventos na busca pela promoção das marcas. Comportamento insustentável na medida em que futuramente não haverá mais material humano que justifique eventos futuros, da mesma forma que o esporte e alto rendimento depende do nascedouro de atletas na base, que por sua vez prosperando atuarão em grandes eventos, num ciclo virtuoso.

É esta maturidade sobre os efeitos benéficos que as ações sociais espontâneas têm sobre os negócios e o fortalecimento do mercado dessas empresas – além da clara noção de significado e dos valores de disputas, atividades, expressões, manifestações, símbolos, monumentos, acervos e repertórios – que determina o imediato socorro dos europeus à Notre Dame, assim como o choro, muitas vezes insincero, dos Brasileiros pelo seu Museu Nacional ou pela falta de surgimento de novos talentos esportivos. É este fenômeno que sequestra recursos de projetos fundamentais, mas de baixa visibilidade, e os canaliza para os grandes eventos, flertando perigosamente com a demolição do material humano necessário para manter estes mesmos eventos viáveis no futuro. Urge um freio de arrumação e um olhar mais estratégico sobre os papéis de cada agente na estrutura de fomento do esporte (e da cultura) e seus impactos no desenvolvimento da sociedade e do próprio mercado que sustenta as mesmas empresas que investem via leis de incentivo e/ou diretamente neste setores.

Paulo Eduardo Roscoe Bicalho é membro efetivo do Conselho Empresarial de Esporte da ACRJ. Profissional de marketing, atuou como responsável pelo setor de patrocínios de grandes empresas. Teve passagem pelo Ministério do Esporte e atualmente administra arenas esportivas do Legado Olímpico.

Priscila Morrot, atua há 10 anos como consultora e produtora de projetos em todas as Leis de Incentivos Federais, Estaduais e Municipais nas áreas de Cultura e Esportes , trabalhou também como consultora de Convênios da Rede Siconv e atualmente é Coordenadora de Convênios da Secretaria da Casa Civil e Governança do Estado do Rio de Janeiro.