O modelo de privatização proposto desvaloriza a empresa quando impõe cláusulas repelidas pelo mercado e pela boa governança
O governo anuncia uma criativa proposta de privatização da Eletrobras difícil de explicar sob a perspectiva de um negócio atraente: ficará com 40% da empresa, mas seus votos corresponderão a somente 10%; buscam-se compradores como investidores financeiros (não permanentes) que, sabidamente, não são os que pagam mais — em detrimento dos investidores estratégicos. Observo, ainda, que o modelo proposto desvaloriza a empresa quando impõe cláusulas repelidas pelo mercado e pela boa governança, tipo: conservar na mão do governo a presidência do conselho de administração; garantir ao governo um poder de veto para impedir decisões que afetem a sua estratégia; obrigação de manter as sedes das empresas controladas em Florianópolis, Brasília, Recife e Rio de Janeiro. Definitivamente, não é um bom começo. Vejamos o que mais virá quando o Congresso vier a debater a proposta.
Há um enorme capital intangível na forma da cultura empresarial desenvolvida nas empresas controladas da Eletrobras. Em seus primeiros anos, tais empresas foram geridas pelos melhores quadros técnicos, seguindo uma hierarquia meritocrática, de grande qualificação — o que ainda é possível se ver, apesar da intensa manipulação política dos últimos anos. Bem administradas, poderão se recuperar em pouco tempo. A Chesf, por exemplo, tem uma cultura amparada na singularidade do Rio São Francisco e os múltiplos usos da água.
Furnas é bem diferente. Nascida para garantir o suprimento de energia na Região Sudeste, por duas décadas foi presidida por John Cotrim e formou a geração que construiu Itaipu. A Eletronorte, mais recente, construiu Tucuruí, a maior usina 100% brasileira. Chegou a desenvolver metodologias de trabalho preservacionistas para atuar na complexa Região Amazônica. A Eletrosul foi já privatizada parcialmente nos anos 90. A enorme competência de seus quadros técnicos foi comprovada por quem adquiriu ali participação.
A privatização de tais empresas deve respeitar sua integridade e se ver orientada para compradores estratégicos. Deve ser procurado o comprador que veja o real valor da(s) empresa(s), não aquele que compra, arruma superficialmente o balanço, demite milhares sem critério e parte rapidamente. O momento pede que o governo imponha a gestão integrada das bacias hidrográficas e que a Eletrobras conserve suas atribuições constitucionais (aproveitamentos internacionais e termonucleares).
Dois outros aspectos são oportunos: primeiro, por imperativo técnico, os sistemas de transmissão devem ser desmembrados em empresas regionais e licitados separadamente. Vemos que o setor de geração está cada vez mais regionalizado, e isto obriga a uma nova topologia de redes de transmissão. A previsível duplicação do mercado em duas décadas fará com que Itaipu atenda a apenas uns 30% da Região Sul em breve.
O segundo aspecto tem a ver com a propalada ideia da corporation, talvez aplicável para as controladas futuramente. São pouquíssimos os bons exemplos de tal estrutura no Brasil de hoje. Partir às pressas para fazer isso na Eletrobras é querer criar uma outra Oi, altamente endividada, ingovernável com grupos se digladiando, fisicamente até, em reuniões de conselho.
Que haja juízo e se impeça a existência de uma monstruosa companhia de amplitude nacional na mão de investidores temporários e oportunistas. Não é exagero afirmar que este modelo cria uma instituição com enorme poder e com grande peso na vida econômica e política da sociedade. Fica evidente que esta estrutura representa, por si só, uma ameaça à nossa democracia e merece urgente revisão.
Artigo publicado no Jornal O Globo
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José Luiz Alquéres
ex-presidente e conselheiro da Associação Comercial do Rio de Janeiro