Por Josier Vilar, médico e presidente da ACRJ. Artigo publicado no Correio da Manhã.
Em todo o mundo, os serviços de saúde são bens de consumo que possuem uma característica singular: não podem ser regulados exclusivamente pelas leis de mercado.
Não é moralmente aceitável, além de eticamente condenável, que, por exemplo, um paciente com câncer não tenha direito a diagnóstico e tratamento no tempo certo, de forma equânime, independentemente de sua condição econômica.
É, portanto, obrigatório que os sistemas de saúde – público ou privado- sejam regulados pelo Estado, pois, no caso específico da saúde, se não existir a mão do Estado, a regulação se dará majoritariamente pelo viés econômico.
Por isso, causa estranheza e indignação o esvaziamento que as agências reguladoras no país estão sofrendo.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar-ANS é um bom exemplo do verdadeiro desmanche que vem ocorrendo no sistema regulador brasileiro.
Todas as nossas agências reguladoras foram criadas para estabelecerem regras civilizatórias entre clientes e prestadores de serviço, garantindo a sustentabilidade econômica dos vários setores regulados da economia.
Infelizmente, uma grande parte delas, hoje, está funcionando abaixo da crítica por uma razão muito simples: ausência de autonomia financeira e cortes recorrentes nos orçamentos de custeio.
No caso da ANS, mas aplicável a maioria das demais agências, não existe reposição de funcionários que se afastam ou se aposentam, não existe embarque tecnológico que permita uma automação de dados, inexiste uma transformação digital que garanta à agência uma correta análise de dados setoriais da saúde com base na inteligência artificial, e por aí vai. Os processos demoram anos para serem resolvidos, apesar do esforço e da dedicação dos seus servidores, que continuam utilizando planilhas Excell e sistemas de gestão obsoletos, impossíveis de se integrarem aos modernos “data lakes”.
Com a ANVISA não é muito diferente. Com frequência ouvimos queixas à lentidão nas análises realizadas pelo órgão, que continua no mundo analógico da gestão operacional, o que impede que novas tecnologias e medicamentos sejam incorporados no tempo correto, prejudicando o cidadão brasileiro. A ANS e a ANVISA geram recursos superavitários, mas nada recebem de volta para investimento ou custeio além do definido orçamentariamente pelo governo que vem cortando recursos ano após ano.
É uma vergonha, que os recursos gerados pelas agências, que teriam de retornar a elas, como prevê a Lei 9961, sejam retidos pelo Tesouro Nacional. Na prática é mais um imposto disfarçado de taxas que o governo se apropria.
As agências reguladoras precisam ser fortalecidas. Para serem independentes, elas necessitam de investimentos que possibilitem uma maior qualificação profissional de seus servidores. Precisam também migrar para o mundo digital da inteligência artificial que lhes dê a capacidade de resposta em tempo real das novas exigências do setor, especialmente na saúde.
No caso da ANS, ela deveria estar na fronteira do conhecimento nas competências de gestão para enfrentar com precisão esse mundo tecnológico acelerado da saúde, dos custos crescentes e das relações assimétricas entre operadores, prestadores de serviços e população em geral.
É inaceitável que se reduza o orçamento a ponto de a Agência Nacional de Saúde estar retornando ao regime de trabalho em home office por não possuir recursos financeiros mínimos para bancar os custos operacionais de atividades fundamentais de fiscalização e call center e nem mesmo para pagamento de consumo de luz, condomínio e serviços de portaria, segurança predial, manutenção etc.
Um verdadeiro apagão da saúde brasileira está acontecendo.
A sociedade brasileira, através das entidades setoriais e das representações políticas no Parlamento, precisa se mobilizar a favor da modernização e do fortalecimento das agências reguladoras, exigindo que sejam mantidos os investimentos necessários para sua maior profissionalização e, assim, avancem no enfrentamento dos desafios da governança, financiamento e gestão/prestação de serviços no setor que atuam.
O Brasil e os empresários do setor saúde brasileiro, não podem permitir o desmanche das agências reguladoras sob o risco de contribuirem para que o caos sanitário se instale entre nós.
Publicado originalmente no Correio da Manhã