Por Fernanda Delgado – membro do Conselho Empresarial de Energia e Transição Energética da ACRJ
A economia do hidrogênio verde pode encontrar na experiência da indústria nascente os elementos que compõem o seu desenvolvimento. O argumento da indústria nascente se refere tradicionalmente à política econômica de cunho protecionista, mas, nesta análise, se propõe a identificar as barreiras que a economia do hidrogênio, em sua fase inicial, se depara e com as quais a política pública deve lidar. Assim, destacam se barreiras não exaustivas de natureza política, econômica, regulatória, técnica, infraestrutura e informacional.
O desenvolvimento da economia do hidrogênio verde vai depender de uma visão política amparada por estratégia com metas específicas e dispositivos econômicos com recursos adequados ao desenvolvimento tecnológico e à criação do mercado, em paralelo ao desenho regulatório e normativo quanto à qualidade, segurança e logística do produto, à formação de recursos humanos, à construção e/ou adaptação das infraestruturas e, não menos importante, à garantia de informação precisa e confiável.
No Brasil, a necessidade de integrar medidas capazes de endereçar as barreiras supracitadas significa transformar sua vantagem comparativa em vantagem competitiva. Em outras palavras, apoiar o desenvolvimento da economia do hidrogênio verde para além da retórica da disponibilidade de recursos energéticos renováveis, mas incluir medidas para fomentar mercados consumidores e garantir ganhos de escala na produção.
Para isso, o Brasil tem trilhado na política pública para esse vetor energético por meio do Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), mas ainda depende de instrumento jurídico-legal para dar seguimento aos avanços necessários quanto a incentivos fiscais e locacionais, linhas de financiamento específicas, mecanismos de contratação de longo prazo, definição de competências do órgão regulador, entre outras questões que favorecerão previsibilidade aos investimentos e segurança aos contratos.
O PNH2, lançado em 2022, cumpre um papel relevante para mobilizar a agenda política e regulatória, ao reunir stakeholders e consolidar o conhecimento nacional sobre o setor. Os antecedentes do PNH2 datam da publicação da Resolução CNPE nº 2, de 10 de fevereiro de 2021, que estabelece orientações sobre pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) no setor de energia, e da Resolução CNPE nº 6, de 20 de abril de 2021, que determina a realização de estudo para proposição de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio.
A primeira orienta o regulador – Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) – a dar prioridade na destinação de recursos de PD&I a sete temas, entre os quais o hidrogênio. A segunda determina a apresentação de proposta de diretrizes para o PNH2 com base em uma série de elementos estratégicos, como: desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e inserção internacional do País, o hidrogênio como vetor de energia para uma matriz energética de baixo carbono, a cooperação internacional para o desenvolvimento tecnológico e de mercado para produção e uso energético, diversidade de fontes para a produção do hidrogênio e a diversidade de suas aplicações na economia, entre outros.
Contextualizando, o sentimento político e econômico no mundo naquele ano estava direcionado à recuperação “pós-pandemia” com ênfase em geração de empregos verdes, construção de infraestruturas sustentáveis e financiamento de soluções inovadoras para a transição energética. Ressalta-se o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris com o governo eleito de Joe Biden, a proposição do plano Objetivo 55 (Fit for 55) da União Europeia (UE) no âmbito do European Green Deal e a intitulação do Brasil como país líder na transição energética pelo Diálogo de Alto Nível das Nações Unidas sobre Energia.
Assim, o momento político internacional e nacional foi favorável à proposição de agenda para novas tecnologias de baixo carbono. Porém, uma série de países também aproveitaram o contexto para lançar suas estratégias para o hidrogênio, o que pressiona o ritmo e o escopo da estratégia brasileira. Os efeitos disso, nos próximos anos, serão percebidos pelo grau de desenvolvimento da cadeia de produção e do preço no País.
Ao aprovar a instituição do PNH2 e sua estrutura de governança, a Resolução CNPE nº 6, de 23 de junho de 2022, expressou o objetivo de “fortalecer o mercado e a indústria do hidrogênio enquanto vetor energético no Brasil” baseado em sete princípios. Os princípios adotam a valorização do potencial nacional de recursos energéticos e o reconhecimento da diversidade de fontes e tecnologias disponíveis ou potenciais, o que indicam a importância da política pública em não eleger preferências. Os princípios também envolvem a descarbonização da economia, a valorização e incentivo ao desenvolvimento tecnológico nacional, o desenvolvimento de um mercado competitivo e o reconhecimento da contribuição da indústria nacional, que combinam os esforços para mitigar emissões de gases de efeito estufa (GEE) em paralelo à mobilização da indústria e à criação de mercados consumidores em bases competitivas.
Por fim, a busca de sinergias e articulação com outros países, ou seja, a cooperação internacional tratada como elemento chave para apoiar o hidrogênio brasileiro. Os princípios elencados explicitam a visão do Brasil e sua posição na economia-política internacional. Além dos princípios, seis eixos de ação: 1) fortalecimento das bases científico[1]tecnológicas; 2) capacitação de recursos humanos; 3) planejamento energético; 4) arcabouço legal e regulatório-normativo; 5) abertura e crescimento do mercado e competitividade; e, 6) cooperação internacional. Os assuntos técnicos relacionados aos eixos são atribuídos a Câmaras Temáticas que, por sua vez, são coordenadas pelo Comitê Gestor do PNH2 (Coges-PNH2), que também supervisiona o planejamento e a implementação do Programa. O Comitê é integrado por onze Ministérios de Estado, dos quais o Ministério de Minas e Energia (MME) é o coordenador, além da ANP, Aneel e EPE (Empresa de Pesquisa Energética), não excluindo mecanismos de colaboração com diferentes atores da sociedade. De um lado, as ações sinalizam o desafio da criação de um novo mercado ao envolver questões transversais e, por outro, a governança implica harmonização às políticas públicas existentes e formação de consensos entre os agentes.
Com as linhas de base lançadas e a estrutura de governança definida, o avanço neste ano foi a aprovação do Plano de Trabalho Trienal do PNH2 2023-2025, cujo foco expresso é o “estímulo ao desenvolvimento das rotas tecnológicas associadas à produção e ao uso de hidrogênio de baixa emissão de carbono”. Por baixa emissão de carbono entende-se na proposta inicial que o porcentual mínimo de redução de emissões em relação ao hidrogênio de referência (obtido pela reforma a vapor do gás) não seja inferior a 50% nos escopos 1 e 2.
O principal resultado do Plano é a proposição de metas, das quais o PNH2 estava, até então, desprovido. Busca-se, até 2025, disseminar plantas piloto de hidrogênio de baixo carbono em todas as regiões do País; até 2030, consolidar o Brasil como o mais competitivo produtor de hidrogênio de baixo carbono do mundo; e, até 2035, consolidar polos de hidrogênio de baixo carbono no Brasil. Para a primeira meta propõe-se elevar o investimento anual em P&D para R$ 200 milhões até 2025, ante R$ 29 milhões aportados em 2020.
Para a segunda, é conferida atenção especial ao hidrogênio verde (obtido da eletrólise da água a partir de energia renovável) quanto à competitividade em preço e à expansão da capacidade instalada de geração de energia renovável. Por último, a estruturação de polos com foco tanto no mercado doméstico quanto para a exportação significa integrar infraestruturas de produção, transporte, armazenamento e consumo, além do acoplamento de setores.
Apesar da relevância do passo dado no Plano Trienal, as metas até 2030 e 2035 carecem de métricas e recursos que as fundamentem. O motivo disso pode ser o caráter orientador e de aplicação não compulsória do Plano Trienal, de modo que a ampliação do acesso a financiamento e a definição de marco legal-regulatório nacional estejam entre as prioridades reconhecidas pelo Coges-PNH2 para o desenvolvimento da economia do hidrogênio no Brasil.
O contexto que favoreceu a criação do PNH2 não é o mesmo no qual ocorreu a aprovação do seu Plano Trienal 2023-2025. Há um ambiente político-econômico mais desafiador, com a aprovação do Carbon Border Adjustment Mechanism na UE, cujo propósito é prevenir o carbon leakage restringindo a importação de produtos carbono- intensivos; do primeiro leilão previsto na política H2Global da Alemanha para contratos de longo prazo de fornecimento de hidrogênio verde; do Inflation Reduction Act nos EUA, que garante incentivos de até US$ 3 por quilograma de hidrogênio; e, do Plan de Acción de Hidrógeno Verde 2023-2030 no Chile, que avança em medidas econômicas para a Estratégia Nacional do Hidrogênio Verde (2020).
Portanto, o Brasil precisa estar atento a esses movimentos e coordenar as vantagens que possui para tornar mais robusta sua ambição na economia do hidrogênio. O hidrogênio não é um todo, mas diferentes partes em um ecossistema. Na transição energética, a economia nascente do hidrogênio verde requer coordenação entre agentes sob uma estratégia unificada para essas diferentes partes, visando transformar os desafios atuais em possibilidades; possibilidades estas cada vez mais urgentes ao enfrentamento da crise climática.
Artigo publicado originalmente no Broadcast Energia.