Por Ricardo Cravo Albin (*)
“Nenhum grande mentiroso tem memória suficiente para ser sempre um mentiroso de êxito”. (Abraham Lincoln).
Minha geração passou a vida inteira a repetir o bordão de Nelson Rodrigues “o Brasil tem complexo de cachorro. Em especial frente aos Estados Unidos”.
A partir da reação recalcitrante do Presidente Trump ao insistir em negar a vitória de Joe Biden esse complexo de inferioridade se dissiparia em meu espírito. E isso sem agregar as milhares de mentiras perpetradas pelo Presidente-bufão, mas pacientemente contabilizadas pelo Washington Post. Isso sem somar as indecorosas grosserias contra a comunidade negra – braço de sedimentação estratégica do país de Lincoln. Isso sem arrolar centenas de atos absurdos, que vão – o mais grave – do desprezo à saúde pública do seu próprio povo ante o coronavírus – que agora se amplia em uma letal segunda onda. Já anunciada, aliás, como prioridade absoluta por Biden, incluindo emocionado apelo a que todos usem máscaras de proteção. Ou a saída do Clube de Paris, retirando os Estados Unidos do Fórum para salvar o meio ambiente. Isso sem nos horrorizarmos com o desmonte sistemático das instituições e do patrimônio político-histórico da nação. Todo um acervo preservado durante décadas da Guerra Fria através de planos secretos da Biblioteca do Congresso, do Arquivo Nacional, entre outros guardiões da História da Democracia seria desmobilizado…
Trump – aparentemente acometido por crises apelidadas de ideológicas– subverteu todos esses cuidados. Ou seja, é de se deduzir a trabalheira que Biden – Kamala terão para reconstruir o país da sanha demolidora de – agora se enxerga com nitidez – um Presidente ensandecido, um mitômano bilionário. Agora felizmente a nação está aninhada em mãos decentes de um político normal, com gestos normais, a manter tradições normais. Ambos aliás até pediram perdão ao país pelo estado a que chegou o atual Presidente ao querer transformar a nação em uma típica Banana Republic. De fato, Trump horrorizou o americano médio ao cercar prédios públicos e comerciais, além de a Casa Branca, com tapumes e cercas não escaláveis, para que fossem defendidos de uma massa de cidadãos revoltosos a protestar contra o que ele, Trump, já sabia: iria perder nas urnas, iria acusar os democratas e ladrões. Seus seguidores, ele certamente desejaria, quebrariam prédios e ateariam fogo às ruas. Nada diferente do que fariam as piores revoltas das Bananas Republics dos anos 50/60.
Ainda ontem, tentando acessar canais alternativos dos Estados Unidos, me deparei com um debate de psiquiatras e cientistas sociais que aventaram exatamente a hipótese de surtos psicóticos do Presidente Trump. Abordaram inclusive todo o conjunto de ideologias infantilizadas a que Trump era apegado, inclusive a brigalhada do nomeia-desnomeia seus assessores principais, além de seus restritíssimos aliados pelo mundo, citando-se inclusive o Brasil, aos quais Trump tratava, segundo eles, sem reciprocidade e com arrogância. O que me fez corar de vergonha.
Outro detalhe de constrangimento que o programa de TV me impôs foi o lado oposto das acusações de roubo pelos democratas com votos desviados do Correio. O que ocorreu foi exatamente o contrário. O Presidente seria o agente de roubo contra os democratas. Vejam: 127 mil votos do condado texano de Harris, depositados em drive-thrus (instituídos para atender eleitores deficientes ou receosos de contrair a pandemia) seriam descartados por republicanos da tropa de choque de Trump. Os ladrões inutilizariam os votos porque “nem medo de ir às urnas presenciais, nem ausência de imunidade para COVID” constavam do Código Eleitoral para poder votar sem sair do carro. A decisão judicial foi favorável aos votantes por automóvel, e a inutilização das cédulas foi abortada apenas 18 horas antes da abertura das urnas. Esse fato gravíssimo serviu como antídoto para Biden responder ao insulto antecipado de que ele roubaria os republicanos. E desfez o mito de que quem acabara por nomear uma nova Ministra da Suprema Corte manteria o judiciário às mãos.
Creio que essa decisão foi o começo de retirar a máscara da truculência e das ilegalidades que Trump esteve (e ainda está) a armar contra Biden. A ressaltar a quebra vexaminosa de mais tradições, especialmente o ato civilizado de cumprimentar o vencedor, tanto quanto o de mostrar aos seus novos ocupantes a Casa Branca.
Por isso tudo, boa parte da imprensa mundial entende que o país nunca esteve tão dividido.
Eu acho o contrário. O país acaba de se repurificar e se unir em torno da discrição e elegância de Joe Biden. A queda de Trump e suas repulsivas reações tisnaram o eleitorado do Presidente “ideológico”. Afinal, ser ideológico é mentir? É quebrar tradições? É levar o país a ser uma Banana Republic? É desdenhar do meio ambiente?
Biden e Kamala fazem a contraface ideal do errático antecessor. Considero que Trump, ao acentuar a cada dia esses delírios, está sendo benéfico à repurificação do país.
Com a derrocada do último candidato à populista de extrema direita, o populismo agonizará daqui em diante. As mentiras e as “fake news” descerão a ladeira da rejeição popular. Tanto quanto os maus modos, a negação à grande imprensa, e até uma linguagem vulgar entrarão na categoria de “abjeção comportamental”, por parte da maioria dos que votam e votarão pelo mundo, inclusive no Brasil.
(*) Benemérito e presidente honorário do Conselho Empresarial de Assuntos Culturais da ACRJ