Toda cidade tropical à beira-mar é sensual, mágica, meio solta. Gulosa. E o Rio é assim. Mas também, pudera: como dizia o Guilherme Figueiredo, a cidade fez-se metrópole lambida pelo Atlântico, untada pelo azeite do português, ardendo em pimenta africana.
Um dia, no entanto, o Rio-Colônia virou Rio-Capital e, então, em vez das paneladas que eram servidas em charretes que percorriam a cidade e paravam nos pontos conhecidos, comia-se nas pensões, nos clubes ou em casa.
Caldos, arroz(es) com camarão, peixes, galinhas, perus, carneiros, porcos, carne de vaca, feijão, farinha, tudo isso acompanhado de muita cebola, inhame, verduras e raízes. De sobremesa, pudins, doce-de-arroz, queijo de Minas, compotas, goiabadas, marmeladas e fruta, muita fruta.
Tanto que à noite, na clássica trilogia do C — colégio, convento, caserna — servia-se uma sopa de caju gelado, à guisa de ceia. Vitamina C na veia.
Depois, em 1834, um navio americano vindo de Boston chegou ao porto do Rio trazendo a grande novidade: sorvete. No princípio não fez o sucesso esperado — “queima a língua” — diziam. Aí alguém teve a ideia de misturá-lo com groselha e suco de frutas. Emplacou!
E o sucesso foi tanto que as sorveterias colocavam um quadro negro do lado de fora, com o horário dos serviços. E as filas davam a volta. Continuam no circuito, novidadeiros: com prosecco, de goiabada e queijo, de brigadeiro…
Mas o Rio-Gourmet nasceu um pouco mais tarde, por volta de 1861, quando o Barão de Mauá instalou na cidade a primeira Fábrica de Gás, oferecendo uma alternativa à lenha.
As mansões de Laranjeiras, do Cosme Velho, do Flamengo e Botafogo agora tinham luz pública — podiam receber até mais tarde. Nasceram, então, as noitadas gastronômicas, regadas à cerveja preta portuguesa, vinho do Porto, vermute, licores e infusões .
Logo depois, em 1894, dois portugueses — Meirelles e Manoel LEBRÃO (este último, um “gênio” que intuiu o chamado marketing de relacionamento: o freguês tem sempre razão) – inauguraram a Confeitaria Colombo.
E o Rio passou a ter o seu Café de La Paix tropical, a marca da Belle Époque. A vida mundana explodia em uma cidade em ebulição, afrancesada, descobrindo a “vertigem” de ser chique. Sem culpa. Circulava dinheiro. Circulavam ideias e falava-se francês e inglês (muito merci, all right, como no samba Café Soçaite, de Miguel Gustavo).
Era a véspera do Rio-Paris, do Pereira Passos.
Seguiu-se um Rio do champagne e do uísque, (Cuba-Libre foi uma onda, entre jovens) das boates e dos primeiros restaurantes estrelados – o Bife de Ouro, no Copa; o Le Bec Fin, no Lido e o Nino em Copacabana, para ficar nos mais emblemáticos.
Mas, serviam-se receitas muito europeias. Mesmo com esse “o sol que passa da conta”, as comidas eram encharcadas de molhos espessos, flambavam-se sobremesas e findavam-se os bródios com licores ou conhaque. E lá fora, quarenta graus!
Aí um fato novo: a Revolução dos Cravos, em Portugal, (1974) ”exportou” para o Rio uma elite de empresários portugueses com dinheiro e bons costumes – sobretudo à mesa — e um restaurateur de visão.
Resultado: o carioca passou a conhecer uma culinária d’além-mar elaborada, vinhos outros que não o verde ou o Mateus Rosé, os cardápios passaram a falar português e a doceiria supimpa.
Vieram, a seguir, os italianos de uma nova geração, decididos a “revogar” o conceito de que o velho Lácio só conhecia a pizza e os cannellonis, regados a Chantis menores, com garrafa envolta em palha.
Os restaurantes oriundi surpreenderam pela variedade e qualidade de suas receitas regionais (sobretudo as do norte) e bons vinhos da Toscana e do Piemonte.
Terceiro movimento: os japas. No início só alguns, na Lagoa e no centro, “o guardanapo vem cozido e o peixe vem cru”, escreveu alguém. Mas justamente o conceito do cru, do fresco, do natural, veio ao encontro do inconsciente tamoio que herdamos dos bravos selvícolas que junto com os portugueses nos fundaram ali “ao pé” do Morro Cara de Cão.
Nossa homenagem a eles, no dia de hoje.
Vida que segue: nisso, os brasileiros reagiram e, numa ponta, começaram a valorizar os ingredientes genuinamente nacionais. Entraram em cena ostras, vieiras, camarões e cavaquinhas do litoral fluminense, além de peixes amazônicos, moquecas capixabas e a exuberante culinária baiana.
Ah, sim: e de São Paulo veio o churrasco rodízio.
Aí explodiu a globalização: os naturebas, os botequins sofisticados (pés-limpos), as tapas espanholas, as pizzarias-gourmet, as cevicherias, as délis, as livrarias-gastrô, os gastrobares, os quiosques à beira-mar/Lagoa, as portinhas que vendem empadinhas, pastéis e bolinhos (o de feijão é hoje uma commodity carioca). Sem esquecer o serviço de entregas em domicílio. Sim senhores: muitas Londres não têm “delivery”.
Observação: não cabe menção aqui aos famosos bares do Rio. É um saudoso capítulo à parte. Nem das outras iguarias estrangeiras: fondues, wurst, borschts, quibes, tortillas e tira-gostosluso-brasileiros.
Mas duas inovações merecem registro especial: a comida a quilo e as churrascarias que servem… variados mariscos!
As primeiras, derrubaram muito fast-food “gringo”, porque é um achado pagar-se pouco por um caleidoscópio de entradas frias, carnes de aves e de gado, ensopados e farta mesa de doces.
E as segundas, as churrascarias, meio uma extensão desse conceito de “tudo junto e misturado”, passaram a incluir frutos do mar fresquíssimos, polvos e lulas, tambaquís, filhotes, pirarucus e tucunarés, além de paellas e risotos, junto com a ciranda de carnes tradicionais e as especiais: rãs, avestruz, coelhos, carneiros e cordeiros, no preço fixo do cardápio.
O último movimento atuou em três frentes: elevou pequenos restaurantes e até lanchonetes à categoria de pontos de gastronomia – e não só nos endereços tradicionais, mas nos morros, da Conceição, do Alemão e nas comunidades: Vidigal, Rocinha e outros. Criou espaço para os food-trucks, hoje tão badalados como as carrocinhas de cachorro quente em Nova Yorque ou as de crêpes em Paris. Resgatou a cachaça, tantos anos humilhada e a colocou nos displays dos melhores hotéis e no balcão dos mixólogos da moda, que recriaram a caipirinha (outras frutas, outros ingredientes: gengibre, pimenta…) ou a incluem em drinques clássicos, como o Negroni.
A cerveja também encontrou o seu pedestal: subiu da tulipa para taças diferenciadas, multiplicou as pequenas indústrias artesanais e entrou para a carta de harmonização com os pratos nos restaurantes mais “contemporâneos”. Hoje compete com o vinho de mesa como bebida gourmet.
O chope continua na calçada, de bermuda.
Moral da história: o Rio é, hoje, em matéria de gastronomia, uma babel-pós-moderna, às vezes um pouco barulhenta demais, com ar-condicionados muito fortes, preços voadores e gente que fala alto.
Mas, criativa, plural. E generosamente curva: como as montanhas e as mulheres desta Cidade divertida, quase sempre Maravilhosa.
Reinaldo Paes Barreto
Vice-Presidente do Conselho Empresarial de Assuntos Culturais da ACRJ