“O artista é aquele que fixa e torna acessível aos mais ‘humanos’ dos homens o espetáculo de que participam sem perceber”
Merleau-Ponty
A arte e os espetáculos públicos devem possuir uma função única? Existem limites para tais expressões? A arte se realiza apenas por meio do seu objeto? No seu criador? No público? A arte deve ser regulada? Se sim, por quem? Como?
No dia 10 de setembro de 2017, a exposição “Queermuseu. Cartografia da diferença na arte brasileira” foi cancelada em Porto Alegre sob protestos e ataques realizados, tanto nas redes sociais, quanto nas próprias dependências do museu Santander Cultural. Cerca de um mês após esse fato, o Museu de Arte do Rio (MAR), por meio de autoridades municipais, cancelou o processo de recepção dessa exposição na cidade.
No mesmo mês, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) a performance “La Bête” do artista Wagner Schwartz gerou grandes tensões após circular uma imagem de uma criança interagindo com o artista nu em cena.
O que esses fatos apresentam em comum?
Ambos foram narrados, por certa parcela da sociedade, como “ofensivos”, “incentivo à pedofilia”, “crime”, “contra os bons costumes”. O artista de “La Bête” foi linchado tanto por vozes reveladas, quanto pelo anonimato da internet.
Nos dois contextos, a expressão artística foi lida como um ataque à “família”, sobre o qual o poder público deveria interferir de modo a proibir.
Por outro lado, as manifestações e interdições, foram interpretadas como práticas de “censura”.
Qual estatuto, seja ele de ordem cultural ou formal, permite que um administrador público ou um agente da justiça interfira de modo a proibir a realização de espetáculos e de outros eventos de intuito artístico?
Confunde-se ato e significado e, com isso, interesse público e domínio privado, presumimos.
A polêmica permanece, atualizando-se.
Em novo contexto de exibição da exposição “Queermuseu”, no Parque Lage no Rio de Janeiro, o juiz Pedro Henrique Alves, da 1ª vara da infância, da juventude e do idoso do Rio de Janeiro, proibiu, no dia 17 de agosto de 2018, que menores de 14 anos, mesmo acompanhados dos pais, pudessem visitar a exposição.
Três dias depois, o desembargador Fernando Foch derrubou esta decisão. Se acompanhados dos pais, jovens menores de 14 anos de idade puderam ter acesso.
A polêmica se expande por meio dos fatos e suas tensões constitutivas.
Como assinalaram os advogados da Associação dos Amigos da Escola de Artes Visuais (EAV), o tema diz respeito a quem deve deter o pátrio poder, ou manter poder, ou seja, o poder familiar.
É o estado ou a sociedade?
Caso escolhamos a primeira opção, quem, deterá o poder? O Ministério da Justiça, pela sua competência de regulamentar a classificação, para efeitos indicativos, de diversões e espetáculos públicos? O Ministério da Cultura, que concede patrocínio por meio da Lei Rouanet? Ou o Poder Judiciário? Conceder, afinal, esse poder a um juiz?
E se a opção for pela sociedade? Quem regula? O museu que exibe? Não há impedimentos para que um museu particular ou mesmo com vinculação ao estado venha a determinar condições de acesso às suas instalações e atividades. A empresa que patrocina por meios de contratos privados? Ou seria a família?
Eixo central do debate. Quem detém, de fato, a competência de educar as crianças? Pode o juiz, representante de um poder público, substituir a condução familiar?
A juíza Andréa Pachá, também do Rio de Janeiro, costuma assinalar que é crescente a pressão de famílias para que o juiz assuma as suas responsabilidades. Sobretudo, quando a relação entre pais e filhos se esgarçam, tornando-se dramas. Como no caso da dependência química de jovens.
Qual o limite da estatização de nossas vidas familiares? Até que ponto o estado pode interferir na constituição de nossas intimidades, definindo-as e regulando-as?
O desembargador do Rio de Janeiro entende que são os pais os únicos “juízes” do poder familiar.
O “Queermuseu”, para além de sua exibição, em Porto Alegre ou no Rio de Janeiro, torna-se aquilo que talvez pretenda: um movimento de ideias a nos deslocar de nossos lugares comuns. Esse caso é, como diria o antropólogo Claude Lévi-Strauss, “bom para pensar”.
Pensar o direito, a sociedade e o estado. Pensar a cidadania. A arte se realiza nas/pelas ideias. Conhecendo ou não a exposição, concordando ou não com os seus argumentos, estamos todos participando dela hoje, diria o filósofo Merleau-Ponty.
Paulo Augusto Franco
Aantropólogo e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, a partir da palestra proferida pelo professor Joaquim Falcão na ACRJ, na reunião do Conselho Empresarial de Cultura, no dia 17 de julho de 2018