Por Reinaldo Paes Barreto, membro do Conselho Empresarial de Cultura da ACRJ
Dois de fevereiro é dia de festa no mar, como cantou Caymmi. E não só no mar: do Rio Negro, em Manaus, passando pela Baía de Guajará, em Belém até o Rio Guaíba, em Porto Alegre, todo o Brasil doce e salgado celebra nessa data a nossa mãe-d’água. E não só com oferendas: com faturamento, também. Os hotéis na orla do Rio Vermelho, por exemplo, em Salvador, e origem dessa tradição, estão com 100% de ocupação prevista. E essa presença de milhares de devotos ricocheta em toda a cadeia do turismo receptivo.
Mas por que a festa para Iemanjá “cai” no dia 2 de fevereiro? Porque os milhões de escravos que vieram da África, a partir do século XVI, trouxeram com eles a fé na sua Mãe Grande, a iorubá maior. Aqui chegando, sobretudo os que foram para o Nordeste logo identificaram em N. Sra. da Conceição a representação de Iemanjá, cuja festa se comemora (e ainda hoje) em 8 de dezembro.
Mas o feroz preconceito dos senhores de engenho e da elite da época “barrava” a presença de negros e escravos na celebração da santa, seja nas catedrais portuguesas, seja nas igrejinhas e capelas dos engenhos. Resultado: esses excluídos foram achar outra data … e outra praia.
Correm os tempos. Em janeiro de 1923, os pescadores do Rio Vermelho, em Salvador, viram as suas redes ficarem vazias: não havia peixes. Organizaram então procissões e fizeram preces para “a matriarca do mar”. Finalmente, no fim do mês, os peixes voltaram em abundância. Imediatamente, no dia 2 de fevereiro, decidiram consagrar a data ao seu culto.
E, com isso, iniciou-se um processo de distinção entre a santa e a entidade. Porque se por um lado, N. Sra. da Conceição e Iemanjá têm em comum o mar salgado (batismo) – tanto que ambas são protetoras dos pescadores e “navegantes” e, portanto, do sustento das famílias – além da maternidade e do cuidado com os filhos, por outro lado há uma diferença “oceânica” entre as duas. A primeira e mais relevante é que Nossa Senhora é imaculada e virgem e Iemanjá foi casada duas vezes e é sexy. Na Nigéria, Benin e Togo, por exemplo, ela é representada como uma Vênus de Iorubá.
E mais: a representação de Iemanjá com um corpo cheio de curvas, lembra as ondas do mar e os peixes … e as sereias. E, de novo, ao contrário de uma santa, Iemanjá é gulosa, vaidosa e não “pede” orações. Pede oferendas: rosas brancas, espelhos, perfumes e bebidas com bolhas: espumantes e até soda. E tem os seus pratos preferidos: peixes, acaçá, bolo de arroz, pata ou galinha branca, camarões, canjica, e o famoso Cuscuz de Iemanjá (ou Lua Cheia). Detalhe: também adora receber velas e rosas brancas, perfumes, sabonetes e bijuterias.
Por fim, além do seu lugar de destaque no panteão da Umbanda e do Candomblé, Iemanjá também merece o olhar da psicanálise, na medida em que tendo sido casada com Olofin, também orixá e com quem teve 10 filhos (donde os seios grandes, representando a amamentação), a sua figura materna também suscita a contradição entre o apego e a nutrição dos seus (inclusive os devotos), e o arquétipo da mãe castradora. No caso de Iemanjá, então, essa contradição se acentua com o seu habitat – a água – dualidade fascinante entre a purificação e o afogamento.
Ou seja, a figura de Iemanjá além de ser um símbolo de acolhimento e proteção também nos ensina sobre a complexidade das relações emocionais.